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Regue as memórias

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Perto de dar adeus a este ano, lembro com saudades dos tantos que já se foram. Nesta memória fraca que o cérebro guarda, não somos nem capazes de lembrar, cronologicamente, ano a ano, as passagens importantes de nossa vida. Apenas aquelas registrados em papéis oficiais ou que anotaram por nós em álbuns de fotos. Então somos capazes de saber o ano do primeiro passo dado, do primeiro dente de leite a cair, da primeira palavra ... Mas e as tantas outras coisas que ficaram como lapsos gostosos da nossa memória? Existiram em algum ano, mas qual?

Em qual ano eu corri atrás do padeiro para comprar um pão doce, polvilhado de açúcar, que ele vendia no "enorme" cesto de palha no guidão da bicicleta? O cheiro era tão docinho que espalhava-se pela rua toda! Que idade eu tinha todas as vezes que ia feliz até a padaria mais ou menos perto da minha casa da infância comprar aqueles suspiros quadrados, de cores lindas, enfeitados com bolinhas? Não sei se gostava mais das cores vivas ou do gosto doce que se desmanchava na boca. E a carroça do leite? Lembro de uma vez ou outra minha mãe comprando leite da roça, quente e aveludado, que o leiteiro despejava, feliz com mais uma venda, na vasilha de alumínio lá de casa.

Que idade eu tinha quando apostei com os meninos da rua que seria capaz de comer mais manga verde com sal do que eles? Que ano foi aquele em que me reuni com as duas amigas preferidas do ensino médio para um chá da tarde das cinco mineiro em que nos fartamos de comer biscoito recheado, sabor morango? Na fase adulta, vamos por eliminação. A memória é menos perversa. É possível identificar mais facilmente os anos de nossos passos.

Mas o que importa mesmo é dar passos, viver. Que a caminhada seja progressiva, que escrevamos a cada dia histórias gostosas para nos lembrarmos. Neste ano que abraço e me despeço, uma lembrança boa é a presença de vocês, que doaram uma parte do tempo em me ler. Quero agradecer. Que nos encontremos em 2014! Aqui, que é o melhor lugar para plantar as saudades das nas nossas futuras memórias!

As contradições

Imagem: Pinterest
Dizem que ter pensamentos positivos faz toda a diferença. É a dita fé que move montanhas. Mas quem nunca acordou um dia com aquele frio na barriga ao saber do desafio. Um desafio que se torna ainda maior porque todos à sua volta acreditam em você, no seu potencial, naquilo que você já provou ao longo da vida e arrancou admiração. 

Nos olhos de todos, você enxerga a fé que eles te impõem. O frio da barriga piora, gela. São engraçadas as contradições da vida, a certeza de que só se pode entender o todo analisando as partes. Não somos uma muralha, um livro, mas somos feitos de tijolos, de páginas. A diferença é enorme para quem se ilude em enxergar o todo apenas. Somos o resultado de uma união de antíteses, uma sequência delas, uma desmentindo a outra sucessivamente. Por isso, vamos seguindo a vida e amadurecendo.

A verdade é que escrever ressalta o desafio. O meu medo é este. O cronômetro já foi ligado, cada dia que passa é um a menos para chegar à última linha. É preciso começar, recomeçar, buscar lógica entre tanta falta de nexo aparente. Aparente porque abaixo dessa pele, há o esqueleto. É preciso descrever com maestria as células escondidas para convencer vocês de que existe um corpo que as sustentam. Não é tarefa fácil, ainda hoje, em dias tão atuais. Mas sou otimista. 

Nossa história


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Quando o Natal aproxima-se, a atmosfera se altera. Há um cheiro mais doce no ar, um gosto de felicidade. Como se todos os homens escondessem as suas maldades para compor a aleluia. Reparem se o mundo à sua volta já não está mais aveludado. E reflitam sobre este mundo de sensações. Eu carrego a certeza que a realidade é única para cada um. O meu mundo não é o mesmo que o de vocês porque somos donos de sensações singulares. O que eu vejo, o que eu sinto e como eu interpreto tudo isso pertence a mim. Posso até dividir, contar, mas será uma subjetividade. Em cada um que ouvir a minha história surtirá um efeito único. Por isso, também por isso, somos únicos, preciosos. Todos carregamos essa riqueza.

Essa riqueza, no entanto, às vezes transborda. Como se as sensações boas apreendidas não coubessem mais na alma e precisassem ser devolvidas ao mundo, aos outros, em boas ações. É um gesto, um sorriso, uma ação maior, uma entrega total. O mundo está pleno dessa solidariedade transbordante. Então, tantas vezes, brota em nós a sensação única dos nossos limites. Fizemos pouco, quase nada, embrulhamos uma boneca ou um carrinho para uma criança pobre na época do Natal. Desfazemos dos brinquedos que se amontoam infelizes pela casa, ocupando desnecessariamente espaços. Isso é boa ação? Boa ação para quem? Nos iludimos que fizemos algo.

A solidariedade real nasce do transbordar, daquilo que não cabe mais na alma e quando nascer será transformador. Necessita de muito acúmulo e de tempo para nos desfazermos adequadamente dela. Um gastar como investimento, que nos dará prazer, alegria espiritual. Qual o seu projeto solidário, aquele que realmente transbordará? A alma diz-nos, incomoda-se, afina o nosso olhar e os demais sentidos. A minha solidariedade real ainda acumula-se na alma para o dia em que pagarei a dívida de todos os meus natais. Não me iludo com os conta-gotas insuficientes. São necessários quebra-galhos para garantir a caminhada. A vergonhosa esmola.

"O que temos de compreender é que, diferentemente dos pobres dinossauros, vítimas de acidentes genéticos que fizeram com que eles crescessem, sem que tivessem tomado decisão alguma sobre o assunto, a nossa situação poderia ser outra.Afinal de contas, a analogia entre os dinossauros e a nossa civilização tem limites. O que somos é resultado de uma história que fizemos - e que poderíamos ter feito de maneira diferente. O crescimento constante e a explosão da bolha não são um destino no qual não podemos fugir..." (Rubem Alves).
* Sejamos maiores, sejamos grandes. O amor é um grande poder. Que o Natal nos renove, renove o mundo! Até 2014!

Todas as cores

Existe uma coisa chamada carisma. Nasce-se assim, carismático ou não. É o ingrediente dos grandes líderes, aos quais nós nos submetemos porque reconhecemos neles a legitimidade de comando. O poder do carisma pode ser usado para o bem e para o mal. Nos dois casos, eles marcarão a história. Nelson Mandela foi um dos maiores. Mostrou-nos cruelmente que a limitação não está na cor. Está na nossa consciência moldada pelo social - quase sempre injusta e cega. Quando nos libertamos dessa consciência social, teremos conquistado a nossa emancipação humana, a liberdade. Nunca será esquecido porque soube nascer para a vida eterna, um mundo de todas as cores.
Bom fim de semana!

Sol nascente

Eshiley é uma menina de três anos que nunca vi. Mora numa invasão chamada Sol Nascente, um dos lugares mais pobres no Distrito Federal. Na cartinha que tenho em mãos, escrita pela mãe ao Papai Noel, o desejo da menina é uma boneca para ninar os sonhos. Brasília resume todos os antagonismos humanos. Nasceu do idealismo humanista de Lucio Costa, mas cresceu corrompida. Tornou-se parcela da civilização que somos e não somos, ou seja, a nulidade humana.

Dados atualíssimos de 2013, da Codeplan, apontam Brasília (fazendo alusão aí a todo o DF) como a quarta cidade mais desigual em renda do MUNDO. Enquanto a renda per capita no Lago Sul é de R$ 5.420,62, na Estrutural (ex-favela construída sobre e ao lado de um lixão) é de R$ 299,55. É preciso debulhar esses números. A pobreza é esmiuçada pelo cheiro, pela tristeza do olhar. Mas a riqueza muitas vezes é um vislumbre, um objetivo que pode ser tão mais decepcionante... Há no Lago Sul quem alugue limusine para as "chiquititas" ricas darem voltas pelas áreas nobres festejando o aniversário. As férias são em Aspen, nos Estados Unidos.

São crianças empobrecidas, sem noção das dicotomias que estão a pouca distância das suas mansões. E acreditem, apesar do calor semiárido de Brasília, há casas com lareira. "Acostumei-me quando morava na Europa", juro que já ouvi essa explicação. Há dondocas que saem para fazer caminhada pelo Lago Sul, enquanto o motorista segue-a de carro. "É que na volta o sol bate no meu rosto", explicou-me uma das mulheres mais ricas de Brasília. Outra viajava direto para Paris, mas nunca se deu ao trabalho de visitar a "chatice" do Louvre.

É preciso paciência. Muita. Perto do Natal, o consumismo parece nos saudar com saudades. O espírito natalino some. O nascimento do Menino Jesus e a simbologia que isso traz, não importa a religião, escondem-se no detalhe. Vivemos enjaulados nas nossas necessidades. Mas o homem racional e moderno desculpa-se ao não enxergar a si próprio. É o inventor das desigualdades irracionais, "algoz e vítima do seu tempo":

"Neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão de fato, ser chamados de ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado’” (Max Weber).

Acredito que podemos mais. Somos capazes de nos reinventar. Fecho os olhos para ver outro mundo!





Tempo ignorado

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Um passarinho chocou-se contra o carro. Não tive o que fazer, rapidamente foi-se a liberdade. Incomodei-me, o que me levou a refletir sobre essa pressa que nos absorve. Quantos não atropelam pássaros e nem se incomodam? Justificam a culpabilidade da morte pelo descuido do pássaro.

Segundos antes do acidente, eu o observei. Estava sobre uma árvore e ganhou os ares da pista seguido por um outro. Estaria distraído pelo amor? Como ficou o outro pássaro diante do acidente? Jovens, afoitos, não tiveram tempo de descobrir os perigos reais da liberdade.


Pensando no pássaro morto na alegria do voo, ligo o computador. Vivemos num mundo tão esquisito. Apressado demais. Atrás de mim, uma mãe triste com a filha que procura a fama fútil, mas feliz com o filho da empregada que empolga-se com a leitura de livros. A empregada não entende o valor do incentivo da patroa. Contou-lhe que sente vergonha porque o menino só anda com livro debaixo do braço e diz que ele "está metido demais". Tornou-se um alienígena nesse mundo real.

Penso que daqui a pouco, crianças com livro na mão serão comparadas a ancestrais da humanidade - sábios na época, mas atrasados nesta atualidade. Certo é que as crianças de hoje têm "aparelhos" que as transportam para fora do mundo real. Talvez lá estejam encontrando o tempo que abandonamos nesta sociedade da tecnologia. Lá, no mundo virtual, encontram "as ruas" para brincar. É ainda possível sonhar.

O pássaro que morre em liberdade é como a criança que desperdiça a infância por nossa incompetência. Nesta sociedade apressada que criamos, é preciso dar "pause" no tempo e sentar-se no chão, abraçar os filhos, e mergulhar com eles no mundo virtual que os fascinam. Há leituras boas lá, mas os pequenos precisam da nossa orientação para se sustentarem em pleno ar. Isso não mudou: só tem sido tempo ignorado.

* Boa semana!