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Gosto de tristeza

 A Jangada de Pedra de José Saramago. 
Há lugares que as palavras doces não cabem. O rio corria manso em suas águas escuras. Os dois jangadeiros empurravam o deslizar e sorriam por ouvir o guia contar novamente a história daquele lugar a estranhos interessados. A felicidade deles me fez pensar no quanto somos todos orgulhosos do lugar de onde o mundo nos surgiu...

Olho para as ostras que crescem sobre os galhos fincados em tripé na vegetação do mangue. Nunca tinha visto aquilo que para aqueles três homens era uma banalidade. Demorou para chegarmos à Telinha. Ela estava à margem, dormindo. O barulho das vozes a despertou e curiosa pôs o focinho para fora d'água e respirou. Aproximou-se da nossa embarcação, mostrou-se e voltou mansamente para a margem.

Nem sabia que existe peixe-boi fora da Amazônia. Mas há essa outra espécie, ainda mais ameaçada de extinção. O peixe-boi marinho difere do amazônico porque consegue nadar do mar para o rio, onde a fêmea tem os seus filhotes. Existem apenas cerca de 500 como Telinha. Antes da consciência chegar ao lugarejo, esses mamíferos aquáticos eram caçados e sua carne vendida em açougues.

- Muita gente comia peixe-boi achando que era carne de boi. O gosto é muito parecido!

A explicação do guia causou-me um gosto de tristeza. Olhei para a margem onde Telinha dormia. Será que o guia já comera carne de peixe-boi? Não perguntei e tentei entreter-me a olhar os caranguejos que, ao entardecer, arriscavam-se a sair dos seus buracos nas margens do rio. (Rovênia Amorim)

A intrometida


Ilustração de Luiz Telles
As palavras tiraram-me do ar por uma semana. Escolhi-as por uma trilha à esquerda. Certa de que estava no caminho correto, fui colhendo o que aparecia pela frente. No ponto final, a mais sábia de todas nem perdeu o tempo em olhar-me. No único gesto, entendi que o percurso acertado era o outro. 

Respirei e dei o primeiro passo na outra direção. Recolhi outras palavras que pensam bem diferente. Cheguei ontem, às 20 horas imprecisas, ao novo ponto final. Pendurei o texto e nem esperei que ela se aproximasse para ler. Se havia ainda outra direção, não vi.  






Ai, palavras, ai, palavras
que estranha potência, a vossa!
Ai, palavras, ai palavras
sois de vento, ides no vento,
no vento que não retorna,
e, em tão rápida existência,
tudo se forma e transforma.
Sois de vento, ides no vento,
e quedais com sorte nova!

Cecília Meireles

Percepções



Pintura de Judith Geher 



Menina mais boba. Debaixo do tamarindo, feria o céu da boca de tanto insistir em tirar o azedo da fruta. Cresceu e hoje se encanta com quem antes de esticar os lábios, sorri com o olhar.

Menino mais bobo. Debaixo do tamarindo, feria a alma de tanto insistir em ver o azedo no mundo. Hoje, afunda-se nos versos e morre toda vez que alguém se encanta por sua dor.



Lar, um doce lar!

Faz tanto tempo que a falta dele me afastou daqui que nem sei por onde começar. Talvez pelo ipê que floriu-se de rosa e só tive tempo de tirar uma foto limitada que não imita beleza e não rouba perfume. Presentes que apenas viver permite. 

Li tanto, escrevi tanto e não será o suficiente, mas invadiu-me as palavras felizes quando ouvi você me contar que leu o que li faz tempo. Sorriu-me ainda mais a alma ao saber de outras páginas que conhecestes antes de mim. Se pudesse aventuraria-me nesse instante pelas mesmas linhas, mas tenho outras a preencher e a percorrer.

Tive pouco vento, tive pouco sol, não me despedi do dia, não saudei a noite. Era tudo um continuum. Passei a correr de salto, a emagrecer sem dieta, a ignorar o redor.  Chorei no auge do cansaço ao me oferecerem uma exclamação e uma interrogação. 

Dias desses tive tanta vontade de vir aqui só para repetir o repente que um senhor cantou-me no elevador. Mas fugiu-me o tempo novamente. E eu, que sempre achei impossível gostar de uma Margarida, apaixonei-me de vez. Todas as manhãs, sou a primeira a afagar o seu pelo tigrado e a oferecer um pouco de leite frio para acalmar o seu miau. Voltar à rotina é um lar, um doce lar!