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A menina e o violino


Tenho poucas palavras. O que não serve de desculpas. Então posso contar que os tênis da menina eram pretos amarrados por cadarços, sem serem os da marca mais conhecida. Já gastos, com as laterais das solas bem brancas. De todo o certo capricho da mãe para a primeira apresentação. Ela usava jeans clareado pelas sucessivas lavadas. A camiseta era padrão, usada por toda a orquestra. No cabelo, novamente o carinho da mãe em forma de tiara com laço de renda comprada em feira.

Imagem Internet
Ela olhou duas vezes para o público ausente. Não sorriu. A vida até ali não lhe dera motivos. Voltou-se para a postura e, ao comando do maestro, começou a acariciar as cordas do violino. As notas davam-lhe brilho, leveza e liberdade. Levantei-me, aplaudi de pé e os poucos sentados imitaram-me. Ela curvou-se, espantada, não sorriu. Havia outros curvados, mas ela roubava-lhes a presença.

Depois, atrás do palco, vi-a com as mãos trêmulas, embalando o instrumento como se fosse a boneca mais cara, que nunca nem sonhara ter. Imaginei-a na casa sem adornos da cidade pobre vizinha ao bairro mais nobre da capital. Infância cercada pela luta diária onde os sonhos mais íntimos são tempos perdidos. Perguntei-lhe o nome, a idade. Virou-se, olhou-me nos olhos e, sem sorrir, contou-me o segredo.

Palavras desconhecidas


“(...) que tristeza para o pensador ou filósofo ter o cérebro a escaldar de ideias e não poder emiti-las com propriedade e segurança por não conhecer a língua do povo que visita!” 
(Oscar Przewodowski)

Imagem Pinterest
A felicidade voa. Na alegria de saber que passei pelos inquisidores, saí afoita e deixei o livro no teto do carro, enquanto ajeitava os papéis e a bolsa no banco. Liguei para contar a notícia e dei a partida. Ao chegar em casa revirei o carro para achar o livro. Será que escorregou e está sob os bancos? Procuro, procuro e nada. Pergunto então à memória e ela responde com a imagem de uma pessoa alegre, falando ao celular e que foi embora esquecendo o livro sobre o carro. Onde terá caído? Será que alguém achou e vai ler? Poxa, estava ainda no começo da leitura e três páginas guardavam pedacinhos de papel marcando passagens que achei interessante...

Bom, dizem mesmo que os livros têm asas! Hoje de manhã, comprei outro e pedi entrega expressa. Daqui a pouco terei o mesmo ao meu alcance. Qual foi a notícia que me fez esquecer o livro? Depois de tantos anos, voltarei à mesma universidade, às cigarras insistentes que ainda esfregam "os pés" pelas árvores do campus. Voltarei ao tempo que exala cheiro de passado no presente. Terei dois anos para responder por que os estudantes brasileiros deixam a educação básica sem dominar uma segunda língua. E propor soluções possíveis para a escola do século XXI. Afinal, outras palavras precisam ser conhecidas.

O sonho



Lendo um livro sobre William Shakespeare, do autor e historiador Stephen GreenBlatt, esbarrei na coincidência. Sabem qual era o nome da mulher do dramaturgo inglês? Anne Hathaway, exatamente o mesmo da atriz queridinha e talentosa de Hollywood. Bom, um trechinho da peça Sonho de uma noite de verão:

"Tive um sonho, que não há entendimento humano capaz de dizer que sonho foi. Não passará de um grande asno quem quiser explicar esse sonho. Parece-me que eu era... Não há quem seja capaz de dizer o que eu era. Parece-me que eu era...e parece-me que eu tinha... Só um bufão maltrapilho seria capaz de tentar explicar o que me pareceu que eu era. O olho de um homem nunca ouviu, a orelha de homem nunca viu, não há mão de homem que possa degustar, nem língua capaz de conceber, nem coração capaz de relatar o que foi o meu sonho."

O tempo e o amor



Imagem/Pinterest

Gostar, gostar mesmo, Janinha gostava era da Etelvina. Magra, magérrima, daquelas de dar dó, Etelvina parecia ainda mais magra porque não tirava nunca o vestido de luto. Era comprido e sem firulas. Simples como a viuvez tem de ser. Mas ela não era triste, não. Etelvina era o contrário da tristeza. Ela ria, ria muito, ria alto e contava suas histórias, novas ou velhas, mas nunca repetidas.

Ela morava numa casa que nem era casa mesmo de verdade. Era um barraco de paredes nuas perdido no meio daquele mato, que ficava num grotão da fazenda do fazendeiro rico. Como Etelvina alegrava todo mundo com os seus casos, ia ficando lá para receber as pessoas interessadas em ouvi-la. De longe, dava para escutar as risadas gostosas e roucas.

Janinha não tinha visto ainda Etelvina. Tudo que sabia dela era de ouvir falar. E todos tinham uma história ouvida dela para recontar. Um dia, o pai puxou a menina pela mão. Ele reclamava pelo caminho que estava com a alma estragada e precisava de uma história nova para servir de remédio. E lá se foram os dois atrás do mato que escondia o barraco.

Etelvina parecia adivinhar a visita. Acendera o fogo do fogão a lenha para esquentar a água do café. E sentara-se à porta do barraco, num tamborete sem detalhes, com o cachimbo na boca como se fosse preta-velha. Pacientava-se, enquanto as ideias escapavam no meio das baforadas. Ao ver a menina, riu, balançando o papo. Janinha achou graça, daquelas graças que não são para rir. É que o vestido era igualzinho ao que todo mundo dizia, mas ninguém havia falado que Etelvina era papuda.

Janinha enfiou os olhos para dentro do barraco, que era escuro como o vestido da viúva. A luz da lenha que trepidava no fogo quase não iluminava nada e, num canto do único cômodo do barraco, havia a lamparina dona de uma chama tímida. Enquanto o pai ouvia a história para se alegrar, a menina inventava o tempo e inventava o amor com as sombras dos dedos, que ganhavam importância na parede de barro e capim. E Etelvina ria alto, ria muito e ria gostoso.

* Ótimo fim de semana!



A inversão




Ilustração: Verónica Algaba

Eu que por tantas vezes conduzi pessoas a falar o que queria escrever. Eu que por tantas vezes até emprestei frases para que o outro falasse e o texto ficasse melhor. Eu que por tantas vezes usei de estratégias para arrancar a verdade escondida, vi-me diante dos dois inquisidores.

Quando a situação se inverte, o desconforto emerge e sobressai o que sou. Quem me dera tivesse a malícia dos políticos, a astúcia das raposas. Que vantagem tem essa espontaneidade que elogiam, esse humor característico, se não sei mentir, se não sei omitir? Tanta sinceridade pode espantar e afundar a pretensão. A minha vontade é de chorar.

As chaves do coração

Há um século nascia Albert Camus, Nobel de literatura em 1957. Infância pobre que lhe enriqueceu a vida e a escrita. As aspas são do autor em "O Estrangeiro", primeiro romance, escrito aos 28 anos. O itálico é grifo meu, traduz o sentimento da leitura.


Imagem da internet

"Eles têm a aparência da mesma raça e, portanto, se detestam."

Quando intimamente nos abandonamos, resta-nos a rudeza.
Por isso, o velho batia no cachorro, insultava-o.
Quando o perdeu, viu nascer aquela dor profunda e incurável.
A amargura matara o amor, a chance de uma solidão pacífica.
Então chorou pela alma dura que teria ainda que suportar.
A solidão assombrava, impiedosa, doía e roía-lhe a paz.



"Ele andava com muita dignidade, sem um gesto inútil!"


O outro velho arrastava-se, mancava atrás do cortejo.
A idade não deixava-o estar mais próximo, atrasava-o.
Mas soube aguardar a sabedoria. Deixou-se amar, entregou-se.
A ela deu o privilégio de amar todo o resto que lhe sobrara.
Não chorou. Não precisava. A alma tinha ido com ela, em comunhão.
Ele habitava a plenitude, a paz imensa trazida pela solidão.




O mês das andorinhas


Ilustração: Pinterest


A nossa existência é um grande mistério. Nem nós mesmos conseguimos nos lembrar de tudo o que vivemos. A memória seleciona o que interessa. A maioria das nossas recordações é uma costura de sustos, emoções, inusitados. Fora isso, o que resta, e é muita coisa, perde-se num limbo.

É esse esconderijo que guarda as ideias preciosas. São elas que afloram quando os dedos teimam em saltitar sobre as teclas para me surpreender na produção de um texto. Qual é o final? Como se eu soubesse...

Mas, posso confessar que nas lembranças que guardo, uma foi forçada. Era menina, estava esparramada no sofá da sala, e fixei o olhar sobre uma folhinha, aquelas que trazem os meses do ano. Desafiei a memória, certa de que guardaria para sempre aquele momento, em que eu olhava a folhinha e a ilustração de andorinhas.

Era uma bobagem que passaria despercebida no meu futuro se eu, naquele instante, não decidisse, torná-la importante. Agora, vivo às voltas com essa lembrança forçada: qual era o mês das andorinhas? E, assim, compreendi que nesta vida não controlamos a memória e o coração. Razão e emoção são surpresas a cada amanhecer.


* Bom fim de semana!


Segredos nus

Imagem da Internet

Que me importa se recusas a me ler,
se à noite me afagas os cabelos?

Que medos te afastam da minha escrita?
Que palavras pensas encontrar ou não?

É uma parte de mim que deixas livre,
verdades intimamente expostas.

Segredos nus que desprezas,
um eu inteiro que ignoras.

Que me importa se esta que vês é a outra que escreve?
Importa-me que um dia possas juntá-las.

Rovênia Amorim - 17/10/2013


As fomes




Imagem: Pinterest


Subo as escadas, às pressas,
na fome de não perder as ideias 
e vejo você, às calmas,  
deixar o prato sujo sobre a mesa!

25/04/2013

Ilusões de infinitude



Como não se apaixonar por Lucrécio, pela sua poesia, ciência e inteligência? Ando às voltas com esse poeta e filósofo latino, que me intriga as noites, que me fascina nos dias.

"Por que os humanos teimam em ser tão infelizes? A resposta, segundo ele, tem a ver com o poder da imaginação. Embora sejam finitos e mortais, os humanos são vítimas de ilusões de infinitude - prazer e dor infinitos. A fantasia do prazer infinito ajuda a explicar sua tendência ao amor romântico: na crença equivocada de que sua felicidade depende da posse absoluta de um único objeto de desejo ilimitado, os humanos são tomados por uma fome febril e insaciável que só pode trazer angústia, e não felicidade."
(A Virada, Stephen GreenBlatt, p. 166)

Abaixo, trechos de Lucrécio que, segundo William Butler Yeats, prêmio Nobel de 1923, trata-se de "a mais bela descrição do ato sexual que já foi escrita":

"No próprio momento da posse, o ardor dos amantes flutua com as mãos. Apertam estreitamente o que desejaram, provocam dores no corpo, muitas vezes ferem os lábios com os dentes e os magoam de beijos."

Recomeçar

Há dias que, ao acordarmos, paramos o tempo, esticamos os braços, libertamos a alma. Ouvimos então a música, dançamos num aconchegante abraço a nós mesmas. Ficamos assim, apaixonadas, nós e nossas almas, até a última nota da melodia dissipar-se no ar. Pisamos leves no chão e convencemo-nos, então, de que a vida vai recomeçar! 



(*) Aos poucos, vou lendo vocês que passaram por aqui. Uma ótima semana!

Hora H


Arquivo Pessoal

Qual o problema de ser omem sem h? Também posso ser muler sem h. Quanta bobagem a gente sonha, não é mesmo? Então imagino das tantas vezes que o hipopótamo teve seu nome escrito de maneira errada nos ditados escolares. Qual o problema de ser ipopótamo? Não é à toa que afunde a cabeça na água para refrescar as ideias. Menos bicho não será!  

Então veio-me o desejo de ser traça de livro só para comer os agás. Quantas poesias e conhecimentos esses "dentes do tempo" não traçaram comendo todas as letras, indiscriminadamente. Eu não prejudicaria tanto a umanidade (oops, sumiu o h!). Seria uma traça apreciadora de hs. Somente eles interessam neste meu sonho. 

Mas não sou traça, nem omem, nem ipópotamo e muito menos muler. Vários entre vários meninos que conheço querem ser piloto de um helicóptero. Mas, assim que aprendem como é difícil escrever he - li - cóp- te- ro, desistem da profissão. 

Então passam a ser poetas de avião ou a paquerar a vida mais fácil de as-tro-nau-ta. Não tem o h para atrapalhar. Digo-lhes que gostoso mesmo é sonhar com montes e buracos de halegria. Ooops, de novo escorrego na letra. É alegria! Viram a confusão? 

Quanta bobagem a gente sonha, não é mesmo? A chuva é que me acordou agora com seus agás bem gagás brincando de pular e escorregar pela minha janela. Encantada com a brincadeira da chuva, lembrei-me que no meio do sono teve um pedaço de pesadelo: uma amiga está chateada porque tem goteira no meio da sala. Um balde incolor apara as gotas e estraga a decoração. 

Então tive a ideia de que o h pode ter lá a serventia de evitar tantas tristezas. E o que tem tudo isso a ver com a chuva que enegrece o céu azul e faz nascer as goteiras no teto da sala? 

Presta atenção que está bem na hora h de não se afogar mais. Aberto, colorido e alegre, o guarda-chuva ficará à vontade na sala, enquanto as visitas brincam de inteligência com as letras. O W, por exemplo, é uma graça em dobro... 




(*) Letras de alegria no fim de semana de vocês e na próxima semana. Volto dia 14.


Bambuzal

Imagem: Pinterest

O bambuzal guarda o dia
e a saudade do brejo
onde havia água fresca 
e o sapo que se escondia

O bambuzal dança na noite
Já cai o cheiro de chuva
que acalma e leva embora
o sapo, o sapo que tremia

Guerra dos sexos

Ilustração: Kristi Malakoff

As escolas mistas ganharam fôlego na nossa sociedade contemporânea após a luta contra a segregação racial. Recentemente, no entanto, a educação separatista para os dois sexos é uma tendência nos Estados Unidos e na França. 


Pesquisadores afirmam que meninas e meninos aprendem de forma diferente e, por consequência, as escolas mistas afetariam negativamente no processo de aprendizagem para ambos. 

A questão é saber se a escola não mista está mais apta a formar profissionais e cidadãos que trabalharão e viverão nessa nossa sociedade mista. 

Penso em retrocesso. Se os mecanismos biológicos de aprendizagem são diferentes em homens e mulheres, a escola do século XXI deveria colaborar para a construção coletiva e cooperativa do saber. 

E você, o que pensa a respeito?

Sentidos


Vila do Reino/Versailles/Arquivo Pessoal
Apressam-se e perdem o tempo. Por pura bobagem não enxergam, não ouvem, não pensam, não avançam. Queria que vendessem tamanquinhos da cor do sol só para que ouvissem a alegria da menina no seu toc-toc pra lá e pra cá. 

Por que não se sentam aqui ou ali para descansar as dores e olhar, só por olhar, os trapos humanos?  Há muito venceram o tempo, as regras, as certezas. Trazem no corpo o odor do mundo e exalam paz. Um olhar tão doce, tão distante...

Um gato atravessa a rua. Calmamente, como se não se importasse com a pressa dos outros, essa pressa que mata. O pipoqueiro passa, arrastando o cansaço. Sobrevive, não reclama mais e deixa para trás o cheiro de fome. As pombas alimentam-se com a vergonha jogada no lixo dos homens.

No jornal que o redemoinho de poeira traz, dançam as notícias esquecidas. Se saísse um jacaré do bueiro daria-lhe um farto e gordo naco da nossa sociedade impressa. Há uma vida que pulsa além das páginas, que urge e tantos deixam-na para amanhã. Sem pressa e sem tempo, ela surge, desenhada e encantadora.