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Amores perdidos


"A inconclusividade não é modéstia intelectual (...), mas uma estratégia de civilizada tolerância entre amigos. A conversa propriamente dita, e não suas conclusões finais, é que carrega a maior parte do significado."  ( A virada,  Stephen Greenblatt, pag.65)


Imagem da Internet

Na caixa de correio, uma carta. Jamais esperada, ela abriu-a ansiosamente. O envelope guardava poucas palavras, mas que valiam muito. Era a primeira vez que lia a letra dele.

O que estava escrito nas poucas linhas não lhe tocou a alma e seria esquecido no tempo. Havia uma fotografia em três por quatro, o brilho de profundos olhos verdes. Perdida entre as coisas que a vida lhe traria, a imagem restaria segura na lembrança.
Antes de despedir-se da antiga vida, ela arriscara. Eram colegas de faculdade, estudavam em salas vizinhas. Ela admirava-o, falaram-se poucas vezes, frases tímidas, mas o suficiente para iludir-lhe o coração. Um dia antes de partir, encheu-se de coragem e bateu à porta, interrompeu a aula, tirou-lhe a concentração:

- Vou partir amanhã, mas queria saber se teria alguma chance.

Ele olhou-a e parecia ter a resposta pronta.
Durante a viagem, enquanto a vegetação passava apressada pela janela, ela voltava-se ao dia anterior, recordava-se das imagens e das palavras daquela ousadia.
Agora, naquele instante, segurava nas mãos o destino desviado. Era o primeiro de tantos amores perdidos que lhe assombrariam.

Um vai, um vem






Nasci na beira de um rio. 
De um rio, um vai, um vem.
Era um rio, um riso fresco 
A brincar sob um balanço. 
Era lá que eu ficava.
Pendurava pensamentos.   
Tive então uma ideia 
E inventei-me para você.



* Dois dias somarão um ótimo fim de semana! 

Um drink a menos



Ilustração: Pinterest
Era impossível não notá-la. Errara feio no vestido, um meio termo entre discreto e ousado. Era dona de uma inteligência hipnotizante, sim, mas não fosse o vestido de paetês em prata, curto entre todos os longos, a beleza escrita poderia não ser notada. 

Os olhares cercavam-na, de cobiça e de inveja. Respirou fundo e mentiu-se à vontade para sobreviver à festa recheada de casais sorridentes. Ela dava o braço ao adolescente, de terno elegante e pé engessado. Como não chamar mais a atenção? 

Rodou pelo salão enfeitado com rosas vermelhas para as bodas de cinquenta anos dos pais de um casal amigo. Mas onde estavam? Não havia mais lugar para se sentar e ela ficou ali, exposta aos olhares incessantes e incendiados. 

A amiga surgiu, mais uma entre tantos longos. 

- Achei que mais pessoas ignorariam o longo! Não se usa tanta formalidade hoje em dia, justificou-se. 

A outra tão feliz no vestido novo, nem ouviu. Levou-a até uma mesa ocupava por dois casais. A conversa seguiu-se forçada até que o adolescente não suportou o caos e refugiou-se em outra mesa, de olho na menina loira da mesma idade. Então descobriu-se que o jovem não era amante, marido ou namorado. 

Seria essa então a explicação para tantos olhares? Não. Ela estava prestes a descobrir. O senhor de seus quarenta e poucos anos, razoavelmente charmoso, espantou-se:

- Você é mãe daquele jovem? Mas não parece de jeito nenhum. Você está muito bem. Parece uma menina... 

Constrangida, ela confirmou balançando verticalmente a cabeça. Ele esvaziou o copo de uísque e ousou novamente o elogio deselegante. 

A mulher, outra de longo, não aguentou. Olhou-a como quem faz uma inspeção detalhada, linha por linha:

- Não, meu amor, ela parece sim ter idade! 

Sem que percebessem, levantou-se, deixou sobre a mesa um sorriso sem riso, despediu-se da discussão no ar, e foi para a pista. Dançar era o que lhe restava na noite. As palavras bêbadas renderiam um escrito qualquer. 

O sabor das histórias


Imagem: Google

Mães são seres absurdos. Erram, na maioria das vezes, pelos exageros de proteger. Assim, a cada dia Ariosto engordava, engordava. Foi preciso passarinhar-se para começar a cuidar da alimentação e a exercitar-se. Ariosto é um passarão criado pelo escritor Sergio Napp e sabiamente ilustrado em preto e branco por Ruben Castillo. Sabiamente porque a criança que invente as cores da história. 

O livro todo é uma brincadeira e um grande aprendizado. Brinca com os sotaques, com o humor dos quadrinhos, com o som das palavras que podem ser desmembradas e,magicamente, transformadas. A história apresenta ainda a nossa cultura e desperta curiosidades nos pequenos leitores sobre Vinicius, Elis, Tom Jobim. "Quem são?" - perguntarão as crianças. 

Como não passarinhar-se por Ariosto e Aninha? Ah, não sabem, claro, quem é ela? Será preciso ler para descobrir porque nem tudo eu posso contar. Engraçado que o próprio nome do livro é uma interrogação. Lembra Quintana, que criou o verbo. 

Em resumo, o livro que, à primeira vista, surge singelo é um embrulho gostoso de desfazer, pois canta e encanta. Passarinhar-se é pra lá de educativo numa época em que as crianças brasileiras ganham peso ao subir na balança. 

E que mãe não se preocupa com a alimentação dos pequenos? Lá em casa mesmo é um sufoco: as gêmeas têm gostos completamente diferentes. Uma está abaixo do peso; nunca tem fome. A outra adora doces e precisa ser vigiada para não trocar arroz e feijão por besteiras coloridas.  

E como não fujo à regra das mães absurdas, quando eram menores tive de inventar uma história para convencê-las a comer verduras e legumes verdes. A Fifi, uma joaninha que morava no jardim, dirigia todos os dias um caminhãozinho carregado de verdinhos até a nossa cozinha. 

Elas sabiam que teriam de comer para a Fifi ficar muito feliz e, assim, um dia convidá-las para um almoço na casinha escondida debaixo de uma planta do jardim. Essa história também teve final feliz como a do Ariosto. Hoje elas comem os brócolis plantados no prato, numa boa. 

E, de sobremesa, leem as histórias que só engordam o saber. São meus exageros de mãe. Eu tento, juro que tento!




Mãos perdidas

Pinterest
Há fontes corporais que fazem o amor brotar: o olhar, o cheiro, a admiração, o toque. Depois ele se aloja no coração e na mente. Ter alguém especial aos olhos é sentir o coração bater forte e um calor confortante de outras mãos a descobrir as suas. 

É o início. As mãos se enlaçam, namoram, se beijam e, magicamente, um anel reluz a união. Mas quando as mãos se desenlaçam, nasce o desencontro. 

Fica a dor em um dos corações, a urgência de se reencontrar, enquanto as outras mãos seguem unidas em si, como asas de pássaros. As mãos que restam mostram os ossos da solidão. Uma mistura de sentimentos, de desconsolo, de vergonha. 

Diante de outras mãos amigas que ainda trazem a união reluzente no anelar esquerdo, elas inquietam-se, murcham ainda mais. Procuram bolsos, costas, refugiam-se na cruzada dos braços. 

Escalas de vida

Foto: Rovênia Amorim

"Antes a terra era cinza
completamente cinza
Ela não era muito bela
Não amávamos nela viver
As pessoas não permaneciam

Mas um dia um poeta
lançou-lhe o azul
Um soldado
derramou-lhe o vermelho
O notívago
atirou-lhe o negro
Uma criança
despejou-lhe o amarelo
Um jardineiro
adicionou-lhe o verde

E então a terra
começa a girar"

Marie-Laure Chalaron

Imagino que o poeta no texto acima seja Pablo Neruda que há 40 anos nasceu em outro mundo.  

"Às terras sem nomes e sem números
baixava o vento de outros domínios,
trazia a chuva fios celestes,
e o deus dos altares impregnados
devolvia as flores e as vidas.

Na fertilidade crescia o tempo." (Pablo Neruda)






Renascer


Imagem: Pinterest

São seis da tarde e os sinos da catedral anunciam os sentimentos do dia. Lembro-me dos seus olhos apagados. Como pôde passar pela vida estrangeiro a si mesmo? Cercou-se do tédio, da atenção de poucos, um quase nada que nada lhe importou. 

A onda da última badalada põe fim às lembranças lidas. As flores molhadas no canteiro brilham sob a luz dos postes. No domingo chegará a primavera e a alegria de cores e perfumes será notada. A nova estação afastará o calor, o deserto e os clarões que tanto o tiravam de si, que tanto o trouxeram até mim. É hora de renascer.     


Um ótimo fim de semana. Que nos traga flores!



Por uma vida, adiado

Ilustração de Greg Spalenka
Conheceu-o tão pouco. Era tão pequena quando ele partiu. Não chorou, nem havia amadurecido o coração para a dor. Não conhecia a morte e nem a vida. 

Quis guardar para o seu sempre os fragmentos de tempo que estivera com ele. Amou-o gratuita, pura e inexplicavelmente. Amou-o pela paz que pairava ao ser redor, translúcida luz que lhe preenchia cada poro e que ainda circula pelo corpo. 

Cabelos brancos e raros, ele não a olhava, não a tocava, não pronunciava uma só palavra. Eram unidos pela cumplicidade do silêncio. Não se exigiam. 

Ela contentava-se em sentar-se ao seu lado e ele a virar as páginas do infindável livro sagrado. Quantas vezes o relera? Que fim ou que começo procurava?

Ela ainda o sente vivo, pulsante. Uma reconfortante presença na alma. O coração se acalma com esse amor que transcende. Um protetor que lhe ampará até o reencontro, quando darão, enfim, o terno abraço por uma vida adiado.  

Ai dos sós!

Ilustração de Jennifer Latimer
Não te enganes. 

A vida vai tratar-te mal. 

Portanto, se quiseres viver tua vida,

Vai, e toma-a.


(Lou Andreas Salomé)



Vez ou outra, elas esbarram na gente. Podemos não entender, mas sabe aquela coisa que se impõe e a qual se respeita? Eis o latim. No último capítulo do livro esbarrei na expressão Vae Solis - Ai dos sós! Quanta filosofia guarda essa expressão! 

Em que condições seríamos sós? Quando abandonamos a nós mesmos? Quando perdemos a rédea da nossa vida? Quando nos dissolvemos no coletivo? 

Dizem que Vae Solis é o som da trombeta do sétimo anjo do apocalipse, o anúncio do armagedon. O som do latim atiça a nossa curiosidade, aquela vontade que todos nós temos de sermos um pouco Indiana Jones. 

O medo e o pecado se impõem, assim como o latim que ressuscita a si mesmo. Seria o latim a língua dos anjos? 

Enfim, isso tudo me transportou às décadas de 1940-50, consideradas por estudiosos os anos dourados das línguas estrangeiras na educação brasileira. O currículo escolar era enriquecido com línguas clássicas, como o latim e grego, e as modernas, como francês, inglês e espanhol. 

No ginasial, as crianças ainda tinham aula de desenho, trabalhos manuais e a recém-incorporada filosofia. E o canto orfeônico era introduzido nas escolas sob a batuta de Villa-Lobos.  A educação parecia florescer na cadência da calma musical. 

Vae solis... vae solis em meio a tanta informação, sem tempo de viver a vida! 

"Percebi, então, que um homem que tenha vivido um único dia poderia facilmente viver cem anos de prisão. Teria recordações suficientes para não se entediar." (Albert Camus - L'étranger, p.121) 

No Cafundó da poesia

Ilustração de Anelise Zimmermann
Eu sempre achei que Cafundó fosse um lugar longe e feio. Tão longe e tão feio que não valeria esforço para se chegar até lá. Diziam os mineiros mais velhos que estariam no Cafundó as botas de Judas e então a gente, que era criança, nem perguntava mais nada. Nossa curiosidade já estava morta e enterrada diante da cara feia que eles faziam.

Mas o destino quis que eu chegasse ao Cafundó. E quanto engano acumulado desde os primeiros falatórios dos adultos que tudo sabem! Bom, pelo menos há os adultos poetas que não cresceram e ficaram bobos, esquecendo-se da imaginação. No Cafundó só não achei as botas de Judas, mas todo o resto é um encanto.

Cheguei em casa com as novidades martelando a cuca. Como deixar as meninas passarem pela infância sem conhecer o Cafundó? Essa palavra nunca entrara lá em casa! Ela estava adormecida nos meus tempos de criança. Mas agora tudo ficara diferente. Cafundó tornara-se um lugar estrelado e não poderia mais ficar escondido das crianças.

- Meninas, vocês sabem o que é Cafundó? 

Diante do NÃO, assim mesmo, bem grande, deixei que inventassem:

- Cafundó é sinônimo de cafuné! - diz a Bruna, sabichona com as mãozinhas firmes na cintura de um palmo.

- Cafundó é no alto das estrelas! - conclui a Clara, espiando com o olhar gigantesco a ilustração da capa.

Cafundó explicado, lemos as aventuras rimadas e voamos para longe, sonhamos tão alto que o cachorro no quintal latiu, mas calou-se para também ouvir os versos. No Cafundó há palavras que brilham e rimam. Ele fica no céu pintado de estrelas, "nos cotovelos do tempo, nos despertares da lua".

O Cafundó é onde mora a poesia e "o sapo violeiro entoa cantiga de roda e uma orquestra de grilos lembra o som de Villa-Lobos". Como chegar lá? O menino dos versos navegou entre as constelações, nós três fomos lendo mesmo. Escutamos o riso dele a cada página virada. E..."se a noite constrói castelos, o menino se ilumina de pirilampos".

- Eu sei o que são pirilampos. Você não vai perguntar, não?

- O que são pirilampos, senhorita sabichona?

- São os vaga-lumes que pedem emprestado um pouco do pisca-pisca das estrelas, ué! 

Eu é que não serei uma adulta boba. Sorri e dei-lhes dois beijos de bons sonhos no Cafundó da Poesia.


* As aspas são do escritor Sergio Napp, autor do livro No cafundó das Estrelas, Editora Paulinas. 

Avanços

Imagem: Pinterest

As palavras são insistentes. Perseguem a gente até chatear. São como crianças à cata de carinho. Querem palco. O espaço que lhes é de direito. Enquanto não conseguem isso, incomodam, quase um enlouquecer.

À vontade é de atirá-las de qualquer jeito como tintas variadas em telas abstratas. Mas elas são danadas e exigem harmonia, como querem as cores dos artistas. É preciso então paciência, contar até três. Ordená-las, revirá-las. Elas parecem entender e esperam, pacientemente, a acomodação. 

Se não fica bom, elas te falam claramente que não está pronto. Soa estranho mesmo. Não há o que discutir. E muda-se. Tenta-se. Retenta-se. Chega-se ao provisório que as acalenta. Mas deixai-as adormecer. Assim, adormecerás juntos. Se não vier melhoras em sonho, se ao reler o ordenamento não ansiar pela vontade de um novo mexido, é sinal de que deve estar um quase. 

A certeza  mesmo só virá depois da fatídica prova, a leitura, o grande risco, a grande aposta. Pense que o leitor terá de saborear as palavras em frases que devem ter cadência e carregar algo especial. Algo como as crianças que abrem a boca ao céu pra saborear gotas de chuva. 

O que resta é essa felicidade boa, que é quase uma bobagem, de quem rodopia, rodopia e não cai, e  descobre o quanto há num pensar assim em nada. E então farta-se com a sensação de alma cheia. 

Nesse exato momento, escritor e leitor fundem-se nas mesmas linhas. Escrever é um exercício de avanços, como nós na vida. Sempre podemos melhorar nas palavras, mas não chegaremos à perfeição. 

Boa semana!

Nítida ilusão

Fonte: Tumblr
 Atrás da aparência, há a essência. Um sempre, uma repetência. A vida esconde-se no poema, a alma no corpo, e a fome na barriga. O cansaço morre no abraço e o dia brinca no mormaço. Nós somos muitos e muitos únicos.

Chove e brilha o sol, o amor amolece e desembrulha o arco-íris. Os bobos sorriem ao enxergar as sete cores que estão a toda hora escondidas na junção de luz.

Vemos o que não importa, ignoramos o pulsar tão perto. Vai passar, convencemo-nos, como se tudo fossem nuvens sopradas pelo vento. 

Nesses instantes, a tristeza tece a beleza. Versos que nascem duros, cruéis e ganham paz quando voam e flutuam. Fluidos nobres e perdidos que alguém sempre acha.

A dor vira prece, a prece ressuscita a graça. Um sempre, uma repetência que enfadonha, que envergonha como the end em português. 

Risca-se a mesmice, no impulso uma nova coragem. Como se pudesse alguém criar uma constância para mentir a mudança. É você que foge, tão perto da própria dor. Sou eu que escapo, tão perto de descobrir a nítida ilusão.


Um ótimo fim de semana!





Es-pe-ran-ça!

Google Imagens

Eis-me numa cidade inventada no meio do Cerrado. Apesar de descuidada, resume esperança. Setembro traz as flores amarelas dos ipês, uma alegria aos gramados e canteiros em sequidão. Por aqui, o ano divide-se em duas estações, a da chuva e a da seca. 

A pele desidrata, o calor intriga, mas conforta. Daqui a pouco, as nuvens negras surgirão trazendo a trégua. Há por aí secas mais dolorosas. As secas da alma. A desesperança que mata.  

Olhando as árvores em prece ao céu amplo, respiro essa humildade latente, viajo até o livro da escritora e jornalista, primeira mulher a integrar a Academia Brasileira de Letras. Faz uma década que Rachel de Queiroz deixou a sequidão deste mundo:

"Uma multidão de coisas tumultuosas, desconhecidas, o alvoroçava - confusas recordações, uma espécie de doce saudade. Uma vontade obscura e incerta de ascender, de voar! Um desejo de introduzir a grandes passos na imensa treva da noite, e a atravessar, e a romper, esquecido das lutas e trabalhos, e penetrar num vasto campo luminoso onde tudo fosse beleza, e harmonia, e sossego." (O Quinze, p.46)

Identidade flexível

Fonte: Pinterest
"...a obra, por força da arte, é recuperação do mundo segundo os mesmos procedimentos que produzem o mundo: mimese." Victor Knoll

Lembrei-me do meu tempo tempo de menina na escola. Dizem que quem é geminiana, uma hora é uma, outra hora é outra. Eu sempre acho que sou uma mistura de mim mesma. No entanto, porém e contudo, quando eu recebia os cadernos novos, encapados com o carinho da minha mãe, via diante das linhas um desafio: achar a minha própria letra. 

Acreditem, mudava de letra a cada dia porque achava que a da colega era mais bonita, mais criativa, mais original, mais chique e mais sei lá o quê. Meus cadernos eram então um recheio de letras diferentes que imitava. 

Pior, como escrevo com as duas mãos, a letra da mão esquerda é diferente da direita e isso me intrigava. Queria que as escritas das duas mãos fossem iguais. Nunca consegui isso. É uma frustração imitar a letra de todas as colegas da sala, do pai e da mãe, e não conseguir imitar a letra da outra mão. É como se uma tivesse birra da outra. 

Enfim, consolei-me com o passar do tempo. Não pensem que era fácil viver com essa minha obstinação do manuscrito perfeito. Minha mãe era a pior crítica, achava meus cadernos "descaprichados" e dizia que era falta de identidade. E quanto mais ela falava isso, mais eu tentava desesperadamente encontrar o desenho de letras que me satisfaria para todo o sempre, amém. Nunca achei. 

Dei-me conta, só agora, de que a letra que uso é uma imitação de uma colega de faculdade, a A.C. E a outra grafia que uso, como rascunho, é a imitação de outra colega, inteligentíssima por sinal, do ensino médio, a R.M.  Nunca tive a minha própria escrita. 

Se sou ainda frustrada? Não. Tenho as diferentes fontes do mundo digital. Quando enjoo de uma, escrevo em outra fonte. Aqui, no blog, escrevo mais em Courier porque imita os tipos das máquinas de datilografia. Mas, notem, que às vezes salto para a fonte Trebuchet por simpatia às letras miúdas, mais juntas. 

E nisso de digitar, as minhas escritas de mão esquerda e mão direita se equilibram. Tenho identidade flexível, eu acho. Mas, admito, fica a curiosidade. Como seria a minha letra original?

Últimas leituras

Mulher lendo na mesa - 1934/Pablo Picasso

Quando a vida fica frenética demais, o casal de amigos, tão bem, divide-se em dois, o trabalho acumula-se em um pouco mais e a boa notícia é adiada, a hora marca a chegada de faxina nas leituras. 

Como é bom atirar palavras tortas e textos começados ao nada. Revigora, ânimo para novo lead. Tive pena de libertar o final de um texto, escrito originalmente em francês, e um restinho anotado de Graciliano Ramos. Leiam e decidam se ainda cabe em algum lugar ou se é melhor deixá-los ir.

"O trem chega a Bondy e os dois jovens descem juntos na estação. Dupont olha ao redor. É tudo cinza. Não há jardins e as cores de Paris. Há um último ponto a considerar, diz ao rapaz:
- Viver na periferia não é de todo uma maldição. Viver na periferia é cultivar uma consciência de justiça que deve contaminar o mundo inteiro. O seu sorriso é uma mensagem de esperança." (Rovênia Amorim)


"Os nossos livros são mercadorias. Esprememos o cérebro com desespero, ganhamos corcunda, palidez, cabelos brancos, temos as vísceras em cacos - e somos fabricantes de poesia, de novelas. O freguês enjoado nos folheia torpecendo o nariz, olha-nos no interior, deixa-nos, como se, na sapataria, notasse pregos dentro de um sapato." 
(Graciliano Ramos)



História mais docinha


Imagem do Google


A pequena que quer ser escritora chega com o desenho nas mãos:
- Que lindos! Quem são?
- Ele e ela, os reis. Você sabia que eles têm quatro filhas?
- Quatro? Não é muita briga para brincar pela casa?
- Não. Elas são todas irmãs de açúcar.
- Não entendi!?
- Eu escrevi a história. Quer que eu leia?
- Quero.
- E assim:

"O Rei de Açúcar tinha um menino risonho na barriga. Mas um dia veio o destino e teria de adoçar o café amargo. Ele protestou e disse que não estava na hora de derreter-se.

Então, chamou a Rainha Doce e os quatro grãos de princesas do Reino Açucarado para um grande banquete de açúcar. Havia potes abertos de açúcar de todas as cores em cada canto. Tinha até açúcar refinado formando arco-íris, rio de água doce e nuvens de algodão bem docinho.

Lambuzaram-se de felicidade por toda a vida. Quem é que não fica feliz com tantos flocos de açúcar espalhados? O Rei despediu-se de todos e foi, sorrindo, tirar o amargo do café!"

* História inspirada no texto escrito pela Clara, uma das gêmeas de 9 anos. Inventem, então, uma DOCE semana!













Com e sem medo, viva!

Arquivo pessoal

   
Não gosto muito de me aproximar de precipícios ou de passar por pontes. Sempre tenho a impressão de que o chão não é seguro. Mas reverencio a beleza desses vales e profundezas. Entre tantos, que já tive o privilégio de conhecer, está o Buraco das Araras, em Bonito (MS).
Crédito de foto:  www.buracodasararas.tur.br

Uma erosão que comeu a fazenda, desvalorizando a terra para os homens, criou um habitat precioso e protegido para as espécies que exibem penas vermelhas, azuis e verdes. 

São várias araras sobrevoando o precipício para chegar aos ninhos construídos nos barrancos. No fundo, uma lagoa esverdeada coberta por vegetação de poucas árvores e habitada por jacarés e cobras. 

Confesso que diante de tanta beleza, esqueci o meu medo. E é assim que sigo em frente, com medo sim, mas sem medo de viver. 

Se quiser saber mais sobre o Buraco das Araras, clique aqui

Bom fim de semana!



Um pouco mais ...

                                                         
... de noite!
Imagem: Tumblr
Quem me dera poder usar os pincéis para anoitecer esse amanhecer. Que mal pode haver nuns minutinhos a mais para nadar nesse aconchego do ébano?

O dia que clareia então puxa-me do travesseiro. Nem ler o quero vou poder e reclamam todos se eu pestanejar. Em segredo invejo a ingênua Luísa que: 

"Tornou-se a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada." (O primo Basílio, Eça de Queirós)




Retalhos da infância


Arquivo pessoal
Nunca entendi a mania da minha mãe de não querer jogar coisas fora. Assim que comecei a ler gostava de folhear os livros do tempo em que ela tinha aquela minha idade e reparar as palavras envelhecidas que traziam acento. 

Visitar a casa dos meus pais é uma viagem ao passado, uma espécie de museu da minha infância. Estão lá brinquedos encardidos, louças do casamento deles e que não se quebraram e o cinzeiro quadrado, de louça, que traz ao centro um cachimbo pregado. Era uma peça de decoração numa casa onde ninguém fumava.  

Hoje só posso concluir que essa mania da minha mãe de guardar coisas rende felicidade à minha volta. Da última vez que a visitei, abri o armário do quarto dela à procura de nada específico. E achei dentro de uma caixa vários retalhos. Foi uma surpresa e tanto. Fiquei tão feliz que lhe agradeci pela mania de guardar coisas antigas. 

A caixa escondia sobras de tecidos dos meus vestidinhos. Minha mãe costurava e bordava e adorava inventar a minha moda de menina. Como ela não sabia pintar e nem fazer crochê, esses adornos ela encomendava às suas tias prendadas. Cresci com esse carinho em forma de vestidos. 

Então achar os retalhos da minha infância foi o melhor presente que ela me deu até hoje. Resolvi lavar os retalhos guardados por tanto tempo e trouxe-os para minha casa bem cheirosos. Decidi que servirão de capas para os caderninhos que comecei a ensaiar nesse vislumbre de artesã. Os dois primeiros já saíram e presenteei as gêmeas. 

Mas o tecido mais especial é vermelho rubi com estampa de leõezinhos estilizados. Era o meu vestido preferido e usei-o até ficar curto demais. O vestido não existe mais, mas o tecido será a capa de um caderninho que guardarei comigo como o bem mais precioso para anotar a vida.

Receita de bolo

 O que é para ser será e o que não é para ser, não será. Será? A ordem altera o resultado da soma? Ainda que a matemática conclua que não, na prática não é bem assim. Aprendi, ou melhor ainda estou na fase empírica de convencer, de que a soma dos ingredientes resulta em bolo não importando a ordem.

Bom, pelo menos deveria resultar. O que as receitas não evidenciam é o pensar sobre os preceitos matemáticos. A ordem. Ela parece imperar aqui. Se você não seguir a ordem, o tempo, as mínimas e máximas quantidades terá como produto final qualquer coisa, menos um bolo apetitoso soltando moléculas voláteis pelo ar enquanto assa no formo. Atente-se então de que a ordem das parcelas pode alterar, sim, a soma. 

Eu, sinceramente, não desisti apesar dos incentivos contrários. Há alguma vergonha em não saber fazer bolo? Mas confesso a minha frustração. Não queria morrer sem aprender essa complexa fórmula de um simples bolo, que sua mãe e sua avó devem saber muito bem. 

Toda essa linear ordem para que as coisas deem certo chega a provocar cegueira à minha volta. Não entendo por que para se chegar a um resultado satisfatório tenha de se seguir o caminho óbvio. 

Se a lógica é achar o resultado pela divisão e o raciocínio peculiar achou-o pela soma, qual é o problema? Não se chegou à solução? Não. Está errado porque não se seguiu a ordem e a blindagem alienante não consegue ver além do que foi delimitado como correto. 

E quem enxerga além disso é obrigado a calar-se para não ser sempre o inconveniente ou assistir inconformado às limitações humanas a desimpulsionar o progresso? 

É como receita de bolo. Não me conformo que a ordem seja uma só para o resultado final. Há de ter outro passo a passo. É o que tento descobrir com todas as caras feias de reprovação à minha volta.  

Caminho da sabedoria

Épictète é personagem de quadrinhos criado pelos ilustradores 
Guillaume Bianco e  Segio Algozzino, inspirado na filosofia
desse grego que viveu como escravo na Roma de Nero
"C'est un homme sage celui qui ne regrette pas ce qu'il n'a pas mais se réjouit de ce qu'il possède". (Épictète). 

"É um homem sábio aquele que não lamenta o que não tem, mas se alegra com o que possui" . (Epicteto)



Elas voltaram e eu soube pelo zumbido. Às seis horas já estavam sugando o doce das flores ainda verdes da árvore. Engraçado como a natureza conhece seus ciclos. Antes mesmo das primeiras chuvas, o esqueleto desfolhado já embala seus brotos verdinhos. É o prenúncio da chuva, de uma nova estação. 

Tempo de treinar o olhar e de lamentar. Lamentar é bom quando não metamorfoseia-se em remorso. A escolha já foi feita e "se não é o começo da felicidade é o começo da sabedoria", como tão bem disse a psicoterapeuta Isabelle Filliozat. 

Sinto prazer nesse zumbido. É quase uma música, versos que ainda não decifrei. O que elas cantam? Abro as cortinas e penso que não há estação certa para escrever porque tudo serve de desculpa para começar. E eu tenho abelhas no meu jardim que finge sequidão, uma alegria em embrião nutrido na terra viva à espera, como palavras escondidas na alma prontas para brotar!