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Cochichos de mar


Olho para um lado. Ninguém. O que também não faz diferença. Perco um tempo ainda a olhar para essa direção. Não há nada a se ver. Levanto-me então, passo as mãos pela minha saia, tiro os grãos de areia que grudaram no tecido. Fico assim, distraída em mim. Sinto o vento embaraçando meus cabelos e um frio eriçando a pele. Deve ser hora de ir embora. 

Olho para o outro lado. Alguém. Longe, quase sumindo do meu olhar. De perto, daria para ver suas tristezas e suas alegrias esculpidas no rosto. Se caminhasse, chegaria lá. Há ainda raios de luz, teria esse tempo, mas não tenho é vontade. Escrevo daqui, mentalmente, sílaba por sílaba a sua vida. É um pescador, sem peixe, que volta para o lar. 

Olho para a frente e há uma imensidão azul que balança. Esqueço a história anterior e tenho vontade de entrar no mar. É um oceano cheio de segredos. Ouço as palavras que cochicham, mas não consigo decifrar os sentidos. Tiro os chinelos e dou passos na areia que afunda. Aproximo-me, mas elas se afastam, ressabiadas, e se escondem na negritude das águas. Já não há mais um fio de luz. Elas lá, caladas, e eu aqui, abraçando a ilusão de apanhar um pouco do que diziam. 





Sabedoria



Artwork by Ty Wilkins


Gosto tanto de vê-lo movimentando esse palito de dente pelos cantos da boca. Faz isso sem perceber o automatismo. Seu olhar está centrado no canivete, que segura com a pele grossa das mãos. O palito vai de um lado a outro na boca, enquanto deixo-me embalar pelo corte preciso do gume e o barulho do descascar da cana. O cheiro é bom. Uma mistura de suor honesto e do doce que suga para remediar a alma, após cuspir no chão de terra arfante o palito úmido. Inspiro gradativamente até não aguentar mais, numa avidez ingênua por aspirar esse seu tempo despretensioso, de quem não busca por já ter encontrado.  Desvio o olhar por uma bobagem que nem sei e, assim, por um nada, perco-o para sempre. 

Dádiva


Como não se incomodar diante das desigualdades neste mundo? 

Não sou a única. Precisamos sair do nosso comodismo!





Contexto



White roses/ Van Gogh


Um friozinho sopra todas as manhãs e ao meio dia esconde-se do sol. A menina pisou em dois grilos verdes e mortos, quase em dias seguidos. 

O menino nunca viu marmelo,cheirou ou experimentou a fruta, mas diz que gosta de doce que não seja marmelada. 

Nexo precisa de contexto ou é o contexto que precisa de nexo? Que flor descolorida é essa que clama uma gota de perfume? 

Se o vento que sopra é de maio, é ela que precisa chegar de repente, antes que passe o tempo.