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Regue as memórias

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Perto de dar adeus a este ano, lembro com saudades dos tantos que já se foram. Nesta memória fraca que o cérebro guarda, não somos nem capazes de lembrar, cronologicamente, ano a ano, as passagens importantes de nossa vida. Apenas aquelas registrados em papéis oficiais ou que anotaram por nós em álbuns de fotos. Então somos capazes de saber o ano do primeiro passo dado, do primeiro dente de leite a cair, da primeira palavra ... Mas e as tantas outras coisas que ficaram como lapsos gostosos da nossa memória? Existiram em algum ano, mas qual?

Em qual ano eu corri atrás do padeiro para comprar um pão doce, polvilhado de açúcar, que ele vendia no "enorme" cesto de palha no guidão da bicicleta? O cheiro era tão docinho que espalhava-se pela rua toda! Que idade eu tinha todas as vezes que ia feliz até a padaria mais ou menos perto da minha casa da infância comprar aqueles suspiros quadrados, de cores lindas, enfeitados com bolinhas? Não sei se gostava mais das cores vivas ou do gosto doce que se desmanchava na boca. E a carroça do leite? Lembro de uma vez ou outra minha mãe comprando leite da roça, quente e aveludado, que o leiteiro despejava, feliz com mais uma venda, na vasilha de alumínio lá de casa.

Que idade eu tinha quando apostei com os meninos da rua que seria capaz de comer mais manga verde com sal do que eles? Que ano foi aquele em que me reuni com as duas amigas preferidas do ensino médio para um chá da tarde das cinco mineiro em que nos fartamos de comer biscoito recheado, sabor morango? Na fase adulta, vamos por eliminação. A memória é menos perversa. É possível identificar mais facilmente os anos de nossos passos.

Mas o que importa mesmo é dar passos, viver. Que a caminhada seja progressiva, que escrevamos a cada dia histórias gostosas para nos lembrarmos. Neste ano que abraço e me despeço, uma lembrança boa é a presença de vocês, que doaram uma parte do tempo em me ler. Quero agradecer. Que nos encontremos em 2014! Aqui, que é o melhor lugar para plantar as saudades das nas nossas futuras memórias!

As contradições

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Dizem que ter pensamentos positivos faz toda a diferença. É a dita fé que move montanhas. Mas quem nunca acordou um dia com aquele frio na barriga ao saber do desafio. Um desafio que se torna ainda maior porque todos à sua volta acreditam em você, no seu potencial, naquilo que você já provou ao longo da vida e arrancou admiração. 

Nos olhos de todos, você enxerga a fé que eles te impõem. O frio da barriga piora, gela. São engraçadas as contradições da vida, a certeza de que só se pode entender o todo analisando as partes. Não somos uma muralha, um livro, mas somos feitos de tijolos, de páginas. A diferença é enorme para quem se ilude em enxergar o todo apenas. Somos o resultado de uma união de antíteses, uma sequência delas, uma desmentindo a outra sucessivamente. Por isso, vamos seguindo a vida e amadurecendo.

A verdade é que escrever ressalta o desafio. O meu medo é este. O cronômetro já foi ligado, cada dia que passa é um a menos para chegar à última linha. É preciso começar, recomeçar, buscar lógica entre tanta falta de nexo aparente. Aparente porque abaixo dessa pele, há o esqueleto. É preciso descrever com maestria as células escondidas para convencer vocês de que existe um corpo que as sustentam. Não é tarefa fácil, ainda hoje, em dias tão atuais. Mas sou otimista. 

Nossa história


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Quando o Natal aproxima-se, a atmosfera se altera. Há um cheiro mais doce no ar, um gosto de felicidade. Como se todos os homens escondessem as suas maldades para compor a aleluia. Reparem se o mundo à sua volta já não está mais aveludado. E reflitam sobre este mundo de sensações. Eu carrego a certeza que a realidade é única para cada um. O meu mundo não é o mesmo que o de vocês porque somos donos de sensações singulares. O que eu vejo, o que eu sinto e como eu interpreto tudo isso pertence a mim. Posso até dividir, contar, mas será uma subjetividade. Em cada um que ouvir a minha história surtirá um efeito único. Por isso, também por isso, somos únicos, preciosos. Todos carregamos essa riqueza.

Essa riqueza, no entanto, às vezes transborda. Como se as sensações boas apreendidas não coubessem mais na alma e precisassem ser devolvidas ao mundo, aos outros, em boas ações. É um gesto, um sorriso, uma ação maior, uma entrega total. O mundo está pleno dessa solidariedade transbordante. Então, tantas vezes, brota em nós a sensação única dos nossos limites. Fizemos pouco, quase nada, embrulhamos uma boneca ou um carrinho para uma criança pobre na época do Natal. Desfazemos dos brinquedos que se amontoam infelizes pela casa, ocupando desnecessariamente espaços. Isso é boa ação? Boa ação para quem? Nos iludimos que fizemos algo.

A solidariedade real nasce do transbordar, daquilo que não cabe mais na alma e quando nascer será transformador. Necessita de muito acúmulo e de tempo para nos desfazermos adequadamente dela. Um gastar como investimento, que nos dará prazer, alegria espiritual. Qual o seu projeto solidário, aquele que realmente transbordará? A alma diz-nos, incomoda-se, afina o nosso olhar e os demais sentidos. A minha solidariedade real ainda acumula-se na alma para o dia em que pagarei a dívida de todos os meus natais. Não me iludo com os conta-gotas insuficientes. São necessários quebra-galhos para garantir a caminhada. A vergonhosa esmola.

"O que temos de compreender é que, diferentemente dos pobres dinossauros, vítimas de acidentes genéticos que fizeram com que eles crescessem, sem que tivessem tomado decisão alguma sobre o assunto, a nossa situação poderia ser outra.Afinal de contas, a analogia entre os dinossauros e a nossa civilização tem limites. O que somos é resultado de uma história que fizemos - e que poderíamos ter feito de maneira diferente. O crescimento constante e a explosão da bolha não são um destino no qual não podemos fugir..." (Rubem Alves).
* Sejamos maiores, sejamos grandes. O amor é um grande poder. Que o Natal nos renove, renove o mundo! Até 2014!

Todas as cores

Existe uma coisa chamada carisma. Nasce-se assim, carismático ou não. É o ingrediente dos grandes líderes, aos quais nós nos submetemos porque reconhecemos neles a legitimidade de comando. O poder do carisma pode ser usado para o bem e para o mal. Nos dois casos, eles marcarão a história. Nelson Mandela foi um dos maiores. Mostrou-nos cruelmente que a limitação não está na cor. Está na nossa consciência moldada pelo social - quase sempre injusta e cega. Quando nos libertamos dessa consciência social, teremos conquistado a nossa emancipação humana, a liberdade. Nunca será esquecido porque soube nascer para a vida eterna, um mundo de todas as cores.
Bom fim de semana!

Sol nascente

Eshiley é uma menina de três anos que nunca vi. Mora numa invasão chamada Sol Nascente, um dos lugares mais pobres no Distrito Federal. Na cartinha que tenho em mãos, escrita pela mãe ao Papai Noel, o desejo da menina é uma boneca para ninar os sonhos. Brasília resume todos os antagonismos humanos. Nasceu do idealismo humanista de Lucio Costa, mas cresceu corrompida. Tornou-se parcela da civilização que somos e não somos, ou seja, a nulidade humana.

Dados atualíssimos de 2013, da Codeplan, apontam Brasília (fazendo alusão aí a todo o DF) como a quarta cidade mais desigual em renda do MUNDO. Enquanto a renda per capita no Lago Sul é de R$ 5.420,62, na Estrutural (ex-favela construída sobre e ao lado de um lixão) é de R$ 299,55. É preciso debulhar esses números. A pobreza é esmiuçada pelo cheiro, pela tristeza do olhar. Mas a riqueza muitas vezes é um vislumbre, um objetivo que pode ser tão mais decepcionante... Há no Lago Sul quem alugue limusine para as "chiquititas" ricas darem voltas pelas áreas nobres festejando o aniversário. As férias são em Aspen, nos Estados Unidos.

São crianças empobrecidas, sem noção das dicotomias que estão a pouca distância das suas mansões. E acreditem, apesar do calor semiárido de Brasília, há casas com lareira. "Acostumei-me quando morava na Europa", juro que já ouvi essa explicação. Há dondocas que saem para fazer caminhada pelo Lago Sul, enquanto o motorista segue-a de carro. "É que na volta o sol bate no meu rosto", explicou-me uma das mulheres mais ricas de Brasília. Outra viajava direto para Paris, mas nunca se deu ao trabalho de visitar a "chatice" do Louvre.

É preciso paciência. Muita. Perto do Natal, o consumismo parece nos saudar com saudades. O espírito natalino some. O nascimento do Menino Jesus e a simbologia que isso traz, não importa a religião, escondem-se no detalhe. Vivemos enjaulados nas nossas necessidades. Mas o homem racional e moderno desculpa-se ao não enxergar a si próprio. É o inventor das desigualdades irracionais, "algoz e vítima do seu tempo":

"Neste último estágio de desenvolvimento cultural, seus integrantes poderão de fato, ser chamados de ‘especialistas sem espírito, sensualistas sem coração, nulidades que imaginam ter atingido um nível de civilização nunca antes alcançado’” (Max Weber).

Acredito que podemos mais. Somos capazes de nos reinventar. Fecho os olhos para ver outro mundo!





Tempo ignorado

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Um passarinho chocou-se contra o carro. Não tive o que fazer, rapidamente foi-se a liberdade. Incomodei-me, o que me levou a refletir sobre essa pressa que nos absorve. Quantos não atropelam pássaros e nem se incomodam? Justificam a culpabilidade da morte pelo descuido do pássaro.

Segundos antes do acidente, eu o observei. Estava sobre uma árvore e ganhou os ares da pista seguido por um outro. Estaria distraído pelo amor? Como ficou o outro pássaro diante do acidente? Jovens, afoitos, não tiveram tempo de descobrir os perigos reais da liberdade.


Pensando no pássaro morto na alegria do voo, ligo o computador. Vivemos num mundo tão esquisito. Apressado demais. Atrás de mim, uma mãe triste com a filha que procura a fama fútil, mas feliz com o filho da empregada que empolga-se com a leitura de livros. A empregada não entende o valor do incentivo da patroa. Contou-lhe que sente vergonha porque o menino só anda com livro debaixo do braço e diz que ele "está metido demais". Tornou-se um alienígena nesse mundo real.

Penso que daqui a pouco, crianças com livro na mão serão comparadas a ancestrais da humanidade - sábios na época, mas atrasados nesta atualidade. Certo é que as crianças de hoje têm "aparelhos" que as transportam para fora do mundo real. Talvez lá estejam encontrando o tempo que abandonamos nesta sociedade da tecnologia. Lá, no mundo virtual, encontram "as ruas" para brincar. É ainda possível sonhar.

O pássaro que morre em liberdade é como a criança que desperdiça a infância por nossa incompetência. Nesta sociedade apressada que criamos, é preciso dar "pause" no tempo e sentar-se no chão, abraçar os filhos, e mergulhar com eles no mundo virtual que os fascinam. Há leituras boas lá, mas os pequenos precisam da nossa orientação para se sustentarem em pleno ar. Isso não mudou: só tem sido tempo ignorado.

* Boa semana!


Jabuticaba ou jamelão?


Os livros são um encanto, mas o que aprendemos neles podem nos trazer desencantos na vida real. Vou explicar, claro!
Imagens da Internet

Um professor universitário, que sempre foi leitor voraz, contou-me a história de quando era menino urbaníssimo. Havia tirado notas máximas nas provas sobre a política do "café com leite" no Brasil. Mas, uma dia, ao ser solto na natureza correu para colher jabuticabas que se fartavam nas árvores. Na hora do almoço, o anfitrião quis saber por que ele não queria comer.

- Não estou com fome porque estou com a barriga cheia de jabuticadas.

Educadamente, o anfitrião disse que não era época de jabuticaba e que, portanto, ele havia comido outra coisa.

- Como era essa fruta?

- Eram redondinhas e vermelhas! - explicou o menino estudioso.

O menino havia comido café. Ou seja, a priori o conhecimento da política econômica cafeeira não transpôs a teoria.

Achei graça dessa história, até porque lembrei que também já fui enganada pelas frutas. Passei a infância inteira, no interior de Minas, comendo jamelão achando ser pitanga. E pior, arrastei o equívoco até a juventude, aqui em Brasília, quando alguém me disse para não deixar o carro sob os pés de jamelão.

P.S.: A nossa língua complicada aceita jabuticaba e jaboticaba, mas o problema aqui é saber identificar a fruta na árvore: é jabuticada ou jamelão?



Bom fim de semana!



Texto Frankenstein


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Picotar papel é uma distração que há muito não recorro. Tenho prazer em juntar os pedacinhos do inteiro e jogá-los pelos ares, uma chuva de palavras picotadas sobre a minha cabeça! Mas quem já passou pela experiência de escrever um texto, e deixá-lo nas mãos da edição, sabe muito bem que, no outro dia, pode se surpreender com a tortura íntima. É o poder dos editores, que mexem e alteram seu texto na pressa do tempo do fechamento e sem o respeito devido.

Não se iludam: apenas quem escreve tem zelo pelas palavras que seleciona para o papel. Quem lê, muitas vezes não entende, acha que foi fácil ou menospreza. Poucos reconhecem o valor real de cada palavra.

Já estive dos dois lados e confesso: chega muita coisa ruim, palavras paridas sem o menor carinho. Gente desleixada que nunca chegará a lugar nenhum no mundo da literatura porque será um eterno refém dos editores. E eles, vocês já sabem... Os deuses da edição não leem direito, não entendem direito o que está escrito e não substituem as palavras corretamente. Criam um verdadeiro texto Frankenstein.

Há exceções, mas não são a regra. Caiu-me a ficha de escrever sobre isso ao ler agora há pouco um poema de Engels, Os beduínos, publicado em 1838. O editor simplesmente substituiu a estrofe final - sem o consentimento do autor.

Era assim:

Retornem a casa, convidados exóticos!
Seus mantos do deserto não combinam
Com nossos paletós e coletes parisienses,
Nem suas canções com nossa literatura!

Ficou assim:

Eles pulam a serviço do dinheiro,
E não pelo chamado primordial da natureza.
Ficam com o olhar vago e em silêncio, todos
Menos um, que entoa um cântico fúnebre.


Engels não gostou. É claro!

Encruzilhadas




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Nunca vamos saber por que estamos neste mundo. A única certeza é que temos esta vida e, por tão somente, ela é preciosa. Mas quem, em algum momento, não se achou perdido, desviado de um caminho? Isso já aconteceu comigo, fortemente, uma vez. Sentei-me na calçada para chorar. Não sei de onde veio o pressentimento, mas intimamente sabia que algo estava muito errado. 

No outro dia, acordei certa de que era preciso jogar tudo para o alto. Deu certo, mas não foi fácil. Assim como não foram fáceis outras decisões que precisaria tomar nos anos seguintes. Os conflitos internos nos inquietam. É angustiante definir direções nas encruzilhadas da vida. Mas será preciso prosseguir e um caminho terá de ser escolhido.


Imaginam vocês que Karl Marx, ainda na adolescência, teve um colapso nervoso ao ver-se diante da encruzilhada intelectual. É que o teórico de O Capital era apaixonado por Shakespeare e tinha lá suas ambições literárias. Até o dia em que decretou o seu fim:

"Súbito, como que num passe de mágica - ah, esse passe, a princípio, foi um golpe dilacerante - avistei o distante reino da verdadeira poesia como um longínquo castelo de fadas, e todas as minhas criações desfizeram-se em nada."

* Enfim, a semana começa ...




Tô fraco!


Arquivo pessoal
Hoje acordei pensando nelas. Bastaria uma, que já seria um luxo a ciscar no meu quintal. Mas em respeito ao Scooby, que se se fez dono do pedaço verde ao redor da casa, o meu sonho ficará adiado. Adoro essas galinhas pintadinhas! Sei que muitos vão me criticar, mas adoro essa elegância aristocrática inata da espécie. Comparada às nossas caipiras... Bom, deixa pra lá.

Um dia desses, achei algumas dando a graça num jardim privado. Podem me achar louca desvairada, mas fiquei lá dando passos atrás das penadas até conseguir mais ou menos um foco para guardar. E escrevam aí o que escrevo aqui: não morro sem ter uma dessas cantando no meu jardim particular. Será um prazer ouvir os seus tô fraco, tô fraco! Na altivez da minha certeza de ridícula seria ainda capaz de dar um laço vermelho no pescoço da senhora D'Angola.

Se sou exagerada? Ah, se Voltaire que era Voltaire, dizia que "o supérfluo é coisa muito necessária", tenho aqui fundamentação para o meu capricho. Não sou eu, é a natureza que é um encanto só.

"Nós devemos desejar que haja um pouco de supérfluo, e por consequência um pouco de luxo por todo o mundo, mesmo para os pobres. A natureza, ela mesma nos dá exemplo de um luxo farto e às vezes extragante da forma como ela decora as pétalas de suas flores, as asas de suas borboletas, ou a couraça de seus mais microscópicos insetos." (Charles Gide - 1847-1932)


(*) Um fim de semana luxuoso e minhas reverências aos nossos irmãos de origem africana.


Cadê nós?


Floating lores/Rebecca Rebouché
Sabe por que mantenho esse blog? Porque adoro escrever. Mais do que isso: adoro escrever o que quero escrever. Esse era o meu maior castigo ao receber uma pauta que não me interessava. O que eu fazia? Inventei a arte-reportagem para driblar a chatice. Procurava fugir do lead acadêmico, da orientação de objetividade total. Como se isso fosse alguma vez possível. A objetividade não existe. Somos parciais, enxergamos o mundo subjetivamente.

Mas, se escritores faziam literatura no jornalismo por que não poderia dar o meu jeitinho mineiro? Quantas vezes saí para a rua orientada para uma matéria e voltei de lá com outra totalmente diferente? Deu certo e sobrevivi por uma década e meia assim: treinando o olhar desfocado do principal. Há tanto nas margens!

Ainda continuo refém das pautas. Vez ou outra preciso escrever sobre um assunto que não me interessa nem um pouco. Como o jornalismo agora é na tela do computador, e ninguém tem paciência para textos compridos, só preciso de poucas linhas para resolver a obrigação. Passa tão rápido como a dor de arrancar um dente de leite mole-mole. Não me digam que não lembram mais!

Enfim, esse nariz de cera todo aí de cima é para dizer que tantos dias chego aqui (no trabalho) questionando por que temos de trabalhar. Se não fosse escrava do trabalho, teria o ócio ao meu dispor. Tanto para ler, tanta vida lá fora... e eu aqui, emburrecendo-me! Não me diga que o trabalho dignifica o homem. Dignificaria se todos os dias a gente pudesse produzir o que quisesse. Aí, sim, seria a maravilha das maravilhas.

Mas nada que eu penso é original. Já foi pensado por Jean-Jacques Rousseau. Ele refletiu sobre esse absurdo que é a contradição humana. O homem, na sua juventude, abre mão do lazer e do ócio para desfrutar disso tudo na velhice. Ou seja, a vida toda é obrigado a tornar-se um outro homem sem poder ser ele mesmo. É um escravo que pensa ser senhor. "... tornam-se prestigiados, porém sem virtudes; racionais, mas sem sabedoria. Donos de tudo aquilo que lhes dá prazer, mas que os impede de serem felizes."

Enfim, precisamos recuperar nossa essência. Precisamos de pouco, muito pouco, para ser feliz. Afinal, para onde foram mesmo os hippies?

Lobos à solta!


Imagem internet

Como tão bem disse o pensador Hobbes no século XVII, nós, em Estado da Natureza, somos lobos de nós mesmos. Não nos suportamos, por isso, a necessidade de um "Estado" de regras sociais que garanta a nossa sobrevivência. Um dos maiores palcos das nossas guerras diárias é no supermercado. E se há direito institucionalizado do poder individual, o lobo se sobressai na voracidade.

Não vi a placa de preferência, meio escondida. Depois a moça do caixa explicaria que não estava colocada ainda, portanto não havia preferência.


- Este caixa não é preferencial?


Antes de ouvir uma resposta, ofereci meu lugar. Olhei, pela primeira vez, para trás e vi uma senhora, não uma idosa. Cabelos brancos, aparência forte, não usava bengala, mas há muito pareceu-me ter extinguido o sorriso. Tive pavor do rancor esticado na face ainda sem rugas.


- É que esta fila é para idosos, deficientes e grávidas! E há novinhas na fila...


Entendi que a ironia era para mim. Voltei-me, novamente, para trás:


- Senhora, não estou grávida, mas cedo o meu lugar.


Nesse momento, ela lançou-me toda a fúria de uma loba idosa:


- Eu sei disso. Já conferi!


Senti-me constrangida, agredida, mas mantive a calma:


- A senhora não deveria agir assim. Não estou grávida, mas até o terceiro mês a mulher não apresenta barriga. E ao falar isso, a senhora pode constranger uma grávida, que passa por uma fase sensível.


Ela não se apiedou. Eriçou os pelos, repetiu o ataque:


- Não constrange, nada. A grávida precisa provar então que está grávida.


Embrulhei minhas compras, duas maçãs e um pote de goma de mascar. Saí dali pensando em Hobbes, que dizia ter nascido gêmeo com o medo. O medo dos lobos.


Vazios



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Não traga problemas,
não traga sonhos.
Deixe-os lá fora.
Ultimamente, eis-me
assim: vazia em mim.

(Rovênia Amorim - 09/11/2013)


Café da manhã

Ele pôs o café
Na xícara
Ele pôs o leite
Na xícara de café
Ele pôs o açúcar
No café com leite
Com pequena colher
Ele mexeu
Ele bebeu o café com leite
E ele pôs a xícara no pires
Sem me falar
Ele acendeu
Um cigarro
Ele fez círculos
Com a fumaça
Ele pôs as cinzas
No cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Ele se levantou
Seu chapéu sobre a cabeça
Ele pegou sua capa de chuva
Porque chovia
E ele partiu
Sob a chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
E eu, eu pus minha cabeça entre as mãos
E eu chorei
(Jacques Prévert/tradução minha)

(*) Boa semana! Não estou triste, mas na correria. Peço desculpas pelas visitas que devo! Vou aparecendo...

Adapte-se até o céu

Religião - Tarsila do Amaral

Crescer em sociedade é um adaptar-se. Primeiramente em relação à religião. Quando era menina, era cercada de regras absurdas. E, quando se é criança, tudo chega-nos com uma força imensa de verdade. Então imaginem o quanto chorei, pedi perdão a Deus por ter jurado em falso. Uma vezinha só, é verdade, mas as outras crianças diziam-me que era pecado mortal. Por um bom tempo conformei-me de que não havia mesmo jeito e já tinha meu lugar reservado no inferno.

Depois contaram-me que entrar no Paraíso era tão, mas tão difícil que era mais fácil achar uma agulha no palheiro. Como eu já estava enroladíssima com meu pecado mortal, achei que se achasse a tal agulha lá poderia ter o perdão divino. Um dia sumi bem cedinho dos cuidados dos meus avós, e fiquei até a noitinha revirando as palhas de milho seco no paiol atrás da tal agulha.


Aos 14 anos, por vergonha de contar meus inúmeros pecados, deixei todos os demais pecadores na igreja passarem à minha frente na fila para ajoelharem-se perante o padre, que escondia-se no confessionário. Não é que bem na minha vez, quando não havia mais alma viva atrás de mim, ele encerrou o expediente? Corri atrás, expliquei que no outro dia era minha crisma e a última chance de entrar no céu. Ele não teve complacência:


- Você deveria ter chegado mais cedo...


- Mas, mas...


E hoje? Adaptei-me à certeza de que chegarei ao céu se conseguir enfiar a linha na agulha. Parecia mais simples quando era menina. Agora, pergunto, por que um buraco quase invisível?




(*) Bom fim de semana prolongado!

Mais-valia da leitura



Esbarrei em Carlos Drummond de Andrade na condição de entrevistado. Separei uns trechinhos para vocês:



Girl reading in a salon/Giovanni Boldini, 1876
Além de ser considerado um dos maiores poetas brasileiros, o senhor também é cronista. O seu lado contista, no entanto, é menos conhecido. Com qual dessas atividades se identifica mais?

(...) me chamam de poeta, quando me considero basicamente um homem que escreve, um preenchedor de papel. E acho bobagem essa história de dizer que sou o maior poeta brasileiro. Alguém já mediu? Para afirmar isso teriam que colocar em fila gente como Manuel Bandeira, Olavo Bilac, Raimundo Correa, Mário de Andrade e muitos outros. Depois, com uma fita métrica, sairiam medindo um por um. O mais alto ganharia o título.


Que conselhos daria a um jovem que quisesse ser escritor?

Cinco. Só escreva quando não puder deixar de fazê-lo, e sempre se pode. Se ficar indeciso entre dois adjetivos, jogue fora ambos e use o substantivo. Leia muito e esqueça o mais que puder. Não responda a ataques de quem não tem categoria literária - seria o mesmo que pregar rabo em inambu. E evite disputar prêmios literários. O pior que pode acontecer é você ganhá-los, conferidos por premiadores que o seu senso crítico não premiaria.


Um conto de Drummond:



Ou isto ou aquilo

O dono da usina, entrevistado, explicou ao repórter que a situação é grave. Há excedente de leite no país, e o consumo não dá para absorver a produção intensiva:

- Uma calamidade. Imagine o senhor que o jornal aqui do município reclama contra a poluição do rio, que está coberto por uma camada alvacenta. Não é nenhum corpo estranho não, é leite. Estão jogando leite no rio porque não têm mais onde jogar. Os bueiros estão entupidos. A população, como o senhor deve saber, é insuficiente para beber toda essa leitalhada ou comê-la em forma de queijo, requeijão, manteiga e coisinhas.

- Insuficiente? Parece que a produção de crianças ainda é maior que a produção de leite.

- Numericamente sim, mas não têm capacidade econômica para beber leite. Têm apenas boca, entende? Então nada feito. Se falta dinheiro aos pais dos garotos para adquirir o produto, ainda bem que se joga o leite fora, em vez de jogar os garotos.

Presentes da leitura


Nada é de todo ruim,
Nada pode ser de todo ruim.
Mesmo no escrito ruim,
colhem-se galhos inspirados.
Mas ler um texto de todo bom,
faz sorrir, faz chorar e
faz pensar, pesar, um pesar
ao virar a última página
como quem ainda não espera
ter chegado mesmo ao fim!

Rovênia Amorim - 10/11/2013


"Mas, enfim, vem o tempo que nós sabemos ler, o terceiro principal evento da nossa vida. O primeiro é aprender a ver; o segundo aprender a andar; o terceiro é este aqui, a leitura. E aqui nós estamos em posse do tesouro do espírito universal. Tão logo nós somos cativos da leitura, encantados pela facilidade que ela nos oferece de conhecer, de desposar sem esforços uma quantidade enorme de destinos extraordinários, de aproveitar as sensações pulsantes para o espírito, de correr aventuras prodigiosas e sem consequências, de agir sem agir, de formar pensamentos mais belos e mais profundos que os nossos e que não custam quase nada; e, enfim, de somar uma infinidade de emoções, de experiências fictícias, de observações que não são nossas às que nós temos e às que nós podemos ter..."
Paul Valéry (1871-1945)

Quem é essa?

Ilustração: Virginia Caldas

Ainda sem cor, mas quase pronta para nascer. Qual será o nome dessa doce menininha? Que histórias ela terá para contar?


Não me olhes assim
Assim, desse jeito
de quem não entende!
Se abro meu sorriso
Ficarás de que jeito?

* Ótimo fim de semana com a graça da calma, com a pressa da alma!


Primeiro amor


Imagem/Pinterest


Num dia inesperado, sente-se o coração bater, as mãos ficam suadas e dá uma vergonha danada. É o amor que brota.

- Você já gostou de um menino?

Ao ouvir isso de uma criança, ela recuou no tempo, à idade de oito anos. Voltava da escola, ria com a amiga fiel ao lado. Sempre que passava em frente à loja de chapéus de feltro, fuçava lá dentro com o olhar. Buscava o menino loiro, que sempre frequentava as missas das crianças no domingo. Ele era tão inteligente, sabia todas as respostas das perguntas do padre.

Nesse dia inesperado, enquanto espiava o fundo da loja, levou o susto, daqueles que fazem o corpo paralisar. Como poderia imaginar que ele estaria ali, em pé, na entrada da loja? Olhava-a como olharia qualquer uma e todos os que passariam diante dele, não tivesse ela ficado como estátua de menina boba ali.

Após aqueles instantes imprecisos que valem uma eternidade, sentiu o puxão na saia do uniforme. Era a amiga:

- Vamos embora, vamos embora. Anda, mexa-se!

Saíram as duas da frente da loja de chapéus, da frente do menino. A amiga ria. Na volta à realidade, ela tentava entender o que tinha acontecido. O coração ainda batia forte demais. Então sentiu, novamente, o puxão na saia:

- Você pode responder a minha pergunta? Você já gostou de um menino?

Esconderijos


Bobagem achar outra coisa. É certo que a alegria vem do Sol. O frio esconde as pessoas. Já pisou numa cidade que te faz enfiar as mãos nos bolsos? Não há riso nas ruas, só o vento procurando frestas para se esconder. As pessoas ficam em seus esconderijos, abraçadas à vontade de nada fazer. Na última cidadezinha gelada que visitei, a hora do almoço parecia aquela hora da madrugada em que todos unem-se nos sonhos. Saí de lá rapidamente e só parei na estrada para roubar uma laranja do pé. Essa, sim, tinha guardado a alegria na cor e no sumo.



Fuga na linha


Nasci sem ser plantada.
Ainda sou semeada em mim.


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Se escrevo, e se escrevo,
é tão para me esconder.
Não há nisso vaidade.
Se agrado é puramente
pela fuga na linha!
Um broto que insiste,
letras frágeis que alinhavo.

02/11/2013
(Rovênia Amorim)

Verso e reverso

A infância é um encanto com seus versos e reversos.
Imagem da internet

Nas questões extras de história para a prova, uma era sobre a origem 

da expressão tão brasileira 'santo do pau oco'. Uma das pequenas respondeu assim:


- Surgiu na época das minas de ouro em Minas Gerais. O santo servia para guardar as riquezas no verso.


* Ótimo final de semana, com a riqueza da certeza guardada nos versos.

A menina e o violino


Tenho poucas palavras. O que não serve de desculpas. Então posso contar que os tênis da menina eram pretos amarrados por cadarços, sem serem os da marca mais conhecida. Já gastos, com as laterais das solas bem brancas. De todo o certo capricho da mãe para a primeira apresentação. Ela usava jeans clareado pelas sucessivas lavadas. A camiseta era padrão, usada por toda a orquestra. No cabelo, novamente o carinho da mãe em forma de tiara com laço de renda comprada em feira.

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Ela olhou duas vezes para o público ausente. Não sorriu. A vida até ali não lhe dera motivos. Voltou-se para a postura e, ao comando do maestro, começou a acariciar as cordas do violino. As notas davam-lhe brilho, leveza e liberdade. Levantei-me, aplaudi de pé e os poucos sentados imitaram-me. Ela curvou-se, espantada, não sorriu. Havia outros curvados, mas ela roubava-lhes a presença.

Depois, atrás do palco, vi-a com as mãos trêmulas, embalando o instrumento como se fosse a boneca mais cara, que nunca nem sonhara ter. Imaginei-a na casa sem adornos da cidade pobre vizinha ao bairro mais nobre da capital. Infância cercada pela luta diária onde os sonhos mais íntimos são tempos perdidos. Perguntei-lhe o nome, a idade. Virou-se, olhou-me nos olhos e, sem sorrir, contou-me o segredo.

Palavras desconhecidas


“(...) que tristeza para o pensador ou filósofo ter o cérebro a escaldar de ideias e não poder emiti-las com propriedade e segurança por não conhecer a língua do povo que visita!” 
(Oscar Przewodowski)

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A felicidade voa. Na alegria de saber que passei pelos inquisidores, saí afoita e deixei o livro no teto do carro, enquanto ajeitava os papéis e a bolsa no banco. Liguei para contar a notícia e dei a partida. Ao chegar em casa revirei o carro para achar o livro. Será que escorregou e está sob os bancos? Procuro, procuro e nada. Pergunto então à memória e ela responde com a imagem de uma pessoa alegre, falando ao celular e que foi embora esquecendo o livro sobre o carro. Onde terá caído? Será que alguém achou e vai ler? Poxa, estava ainda no começo da leitura e três páginas guardavam pedacinhos de papel marcando passagens que achei interessante...

Bom, dizem mesmo que os livros têm asas! Hoje de manhã, comprei outro e pedi entrega expressa. Daqui a pouco terei o mesmo ao meu alcance. Qual foi a notícia que me fez esquecer o livro? Depois de tantos anos, voltarei à mesma universidade, às cigarras insistentes que ainda esfregam "os pés" pelas árvores do campus. Voltarei ao tempo que exala cheiro de passado no presente. Terei dois anos para responder por que os estudantes brasileiros deixam a educação básica sem dominar uma segunda língua. E propor soluções possíveis para a escola do século XXI. Afinal, outras palavras precisam ser conhecidas.

O sonho



Lendo um livro sobre William Shakespeare, do autor e historiador Stephen GreenBlatt, esbarrei na coincidência. Sabem qual era o nome da mulher do dramaturgo inglês? Anne Hathaway, exatamente o mesmo da atriz queridinha e talentosa de Hollywood. Bom, um trechinho da peça Sonho de uma noite de verão:

"Tive um sonho, que não há entendimento humano capaz de dizer que sonho foi. Não passará de um grande asno quem quiser explicar esse sonho. Parece-me que eu era... Não há quem seja capaz de dizer o que eu era. Parece-me que eu era...e parece-me que eu tinha... Só um bufão maltrapilho seria capaz de tentar explicar o que me pareceu que eu era. O olho de um homem nunca ouviu, a orelha de homem nunca viu, não há mão de homem que possa degustar, nem língua capaz de conceber, nem coração capaz de relatar o que foi o meu sonho."

O tempo e o amor



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Gostar, gostar mesmo, Janinha gostava era da Etelvina. Magra, magérrima, daquelas de dar dó, Etelvina parecia ainda mais magra porque não tirava nunca o vestido de luto. Era comprido e sem firulas. Simples como a viuvez tem de ser. Mas ela não era triste, não. Etelvina era o contrário da tristeza. Ela ria, ria muito, ria alto e contava suas histórias, novas ou velhas, mas nunca repetidas.

Ela morava numa casa que nem era casa mesmo de verdade. Era um barraco de paredes nuas perdido no meio daquele mato, que ficava num grotão da fazenda do fazendeiro rico. Como Etelvina alegrava todo mundo com os seus casos, ia ficando lá para receber as pessoas interessadas em ouvi-la. De longe, dava para escutar as risadas gostosas e roucas.

Janinha não tinha visto ainda Etelvina. Tudo que sabia dela era de ouvir falar. E todos tinham uma história ouvida dela para recontar. Um dia, o pai puxou a menina pela mão. Ele reclamava pelo caminho que estava com a alma estragada e precisava de uma história nova para servir de remédio. E lá se foram os dois atrás do mato que escondia o barraco.

Etelvina parecia adivinhar a visita. Acendera o fogo do fogão a lenha para esquentar a água do café. E sentara-se à porta do barraco, num tamborete sem detalhes, com o cachimbo na boca como se fosse preta-velha. Pacientava-se, enquanto as ideias escapavam no meio das baforadas. Ao ver a menina, riu, balançando o papo. Janinha achou graça, daquelas graças que não são para rir. É que o vestido era igualzinho ao que todo mundo dizia, mas ninguém havia falado que Etelvina era papuda.

Janinha enfiou os olhos para dentro do barraco, que era escuro como o vestido da viúva. A luz da lenha que trepidava no fogo quase não iluminava nada e, num canto do único cômodo do barraco, havia a lamparina dona de uma chama tímida. Enquanto o pai ouvia a história para se alegrar, a menina inventava o tempo e inventava o amor com as sombras dos dedos, que ganhavam importância na parede de barro e capim. E Etelvina ria alto, ria muito e ria gostoso.

* Ótimo fim de semana!



A inversão




Ilustração: Verónica Algaba

Eu que por tantas vezes conduzi pessoas a falar o que queria escrever. Eu que por tantas vezes até emprestei frases para que o outro falasse e o texto ficasse melhor. Eu que por tantas vezes usei de estratégias para arrancar a verdade escondida, vi-me diante dos dois inquisidores.

Quando a situação se inverte, o desconforto emerge e sobressai o que sou. Quem me dera tivesse a malícia dos políticos, a astúcia das raposas. Que vantagem tem essa espontaneidade que elogiam, esse humor característico, se não sei mentir, se não sei omitir? Tanta sinceridade pode espantar e afundar a pretensão. A minha vontade é de chorar.

As chaves do coração

Há um século nascia Albert Camus, Nobel de literatura em 1957. Infância pobre que lhe enriqueceu a vida e a escrita. As aspas são do autor em "O Estrangeiro", primeiro romance, escrito aos 28 anos. O itálico é grifo meu, traduz o sentimento da leitura.


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"Eles têm a aparência da mesma raça e, portanto, se detestam."

Quando intimamente nos abandonamos, resta-nos a rudeza.
Por isso, o velho batia no cachorro, insultava-o.
Quando o perdeu, viu nascer aquela dor profunda e incurável.
A amargura matara o amor, a chance de uma solidão pacífica.
Então chorou pela alma dura que teria ainda que suportar.
A solidão assombrava, impiedosa, doía e roía-lhe a paz.



"Ele andava com muita dignidade, sem um gesto inútil!"


O outro velho arrastava-se, mancava atrás do cortejo.
A idade não deixava-o estar mais próximo, atrasava-o.
Mas soube aguardar a sabedoria. Deixou-se amar, entregou-se.
A ela deu o privilégio de amar todo o resto que lhe sobrara.
Não chorou. Não precisava. A alma tinha ido com ela, em comunhão.
Ele habitava a plenitude, a paz imensa trazida pela solidão.




O mês das andorinhas


Ilustração: Pinterest


A nossa existência é um grande mistério. Nem nós mesmos conseguimos nos lembrar de tudo o que vivemos. A memória seleciona o que interessa. A maioria das nossas recordações é uma costura de sustos, emoções, inusitados. Fora isso, o que resta, e é muita coisa, perde-se num limbo.

É esse esconderijo que guarda as ideias preciosas. São elas que afloram quando os dedos teimam em saltitar sobre as teclas para me surpreender na produção de um texto. Qual é o final? Como se eu soubesse...

Mas, posso confessar que nas lembranças que guardo, uma foi forçada. Era menina, estava esparramada no sofá da sala, e fixei o olhar sobre uma folhinha, aquelas que trazem os meses do ano. Desafiei a memória, certa de que guardaria para sempre aquele momento, em que eu olhava a folhinha e a ilustração de andorinhas.

Era uma bobagem que passaria despercebida no meu futuro se eu, naquele instante, não decidisse, torná-la importante. Agora, vivo às voltas com essa lembrança forçada: qual era o mês das andorinhas? E, assim, compreendi que nesta vida não controlamos a memória e o coração. Razão e emoção são surpresas a cada amanhecer.


* Bom fim de semana!


Segredos nus

Imagem da Internet

Que me importa se recusas a me ler,
se à noite me afagas os cabelos?

Que medos te afastam da minha escrita?
Que palavras pensas encontrar ou não?

É uma parte de mim que deixas livre,
verdades intimamente expostas.

Segredos nus que desprezas,
um eu inteiro que ignoras.

Que me importa se esta que vês é a outra que escreve?
Importa-me que um dia possas juntá-las.

Rovênia Amorim - 17/10/2013


As fomes




Imagem: Pinterest


Subo as escadas, às pressas,
na fome de não perder as ideias 
e vejo você, às calmas,  
deixar o prato sujo sobre a mesa!

25/04/2013

Ilusões de infinitude



Como não se apaixonar por Lucrécio, pela sua poesia, ciência e inteligência? Ando às voltas com esse poeta e filósofo latino, que me intriga as noites, que me fascina nos dias.

"Por que os humanos teimam em ser tão infelizes? A resposta, segundo ele, tem a ver com o poder da imaginação. Embora sejam finitos e mortais, os humanos são vítimas de ilusões de infinitude - prazer e dor infinitos. A fantasia do prazer infinito ajuda a explicar sua tendência ao amor romântico: na crença equivocada de que sua felicidade depende da posse absoluta de um único objeto de desejo ilimitado, os humanos são tomados por uma fome febril e insaciável que só pode trazer angústia, e não felicidade."
(A Virada, Stephen GreenBlatt, p. 166)

Abaixo, trechos de Lucrécio que, segundo William Butler Yeats, prêmio Nobel de 1923, trata-se de "a mais bela descrição do ato sexual que já foi escrita":

"No próprio momento da posse, o ardor dos amantes flutua com as mãos. Apertam estreitamente o que desejaram, provocam dores no corpo, muitas vezes ferem os lábios com os dentes e os magoam de beijos."

Recomeçar

Há dias que, ao acordarmos, paramos o tempo, esticamos os braços, libertamos a alma. Ouvimos então a música, dançamos num aconchegante abraço a nós mesmas. Ficamos assim, apaixonadas, nós e nossas almas, até a última nota da melodia dissipar-se no ar. Pisamos leves no chão e convencemo-nos, então, de que a vida vai recomeçar! 



(*) Aos poucos, vou lendo vocês que passaram por aqui. Uma ótima semana!

Hora H


Arquivo Pessoal

Qual o problema de ser omem sem h? Também posso ser muler sem h. Quanta bobagem a gente sonha, não é mesmo? Então imagino das tantas vezes que o hipopótamo teve seu nome escrito de maneira errada nos ditados escolares. Qual o problema de ser ipopótamo? Não é à toa que afunde a cabeça na água para refrescar as ideias. Menos bicho não será!  

Então veio-me o desejo de ser traça de livro só para comer os agás. Quantas poesias e conhecimentos esses "dentes do tempo" não traçaram comendo todas as letras, indiscriminadamente. Eu não prejudicaria tanto a umanidade (oops, sumiu o h!). Seria uma traça apreciadora de hs. Somente eles interessam neste meu sonho. 

Mas não sou traça, nem omem, nem ipópotamo e muito menos muler. Vários entre vários meninos que conheço querem ser piloto de um helicóptero. Mas, assim que aprendem como é difícil escrever he - li - cóp- te- ro, desistem da profissão. 

Então passam a ser poetas de avião ou a paquerar a vida mais fácil de as-tro-nau-ta. Não tem o h para atrapalhar. Digo-lhes que gostoso mesmo é sonhar com montes e buracos de halegria. Ooops, de novo escorrego na letra. É alegria! Viram a confusão? 

Quanta bobagem a gente sonha, não é mesmo? A chuva é que me acordou agora com seus agás bem gagás brincando de pular e escorregar pela minha janela. Encantada com a brincadeira da chuva, lembrei-me que no meio do sono teve um pedaço de pesadelo: uma amiga está chateada porque tem goteira no meio da sala. Um balde incolor apara as gotas e estraga a decoração. 

Então tive a ideia de que o h pode ter lá a serventia de evitar tantas tristezas. E o que tem tudo isso a ver com a chuva que enegrece o céu azul e faz nascer as goteiras no teto da sala? 

Presta atenção que está bem na hora h de não se afogar mais. Aberto, colorido e alegre, o guarda-chuva ficará à vontade na sala, enquanto as visitas brincam de inteligência com as letras. O W, por exemplo, é uma graça em dobro... 




(*) Letras de alegria no fim de semana de vocês e na próxima semana. Volto dia 14.


Bambuzal

Imagem: Pinterest

O bambuzal guarda o dia
e a saudade do brejo
onde havia água fresca 
e o sapo que se escondia

O bambuzal dança na noite
Já cai o cheiro de chuva
que acalma e leva embora
o sapo, o sapo que tremia