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A vida na face

Foto: Tumblr.com

Chapéu de caubói, barba estilo Wolverine, ele na sua inquietude pisou no pé da senhorinha japonesa que subia naquele bondinho de San Francisco. Ela, muito educada, sufocou o gemido de dor. O rapaz, apesar da aparência, tinha coração de ouro e redimiu-se em mil desculpas. Mas esqueceu-se rapidamente da senhorinha para retomar o bate-papo animado com o negro alto, meio gordo, meio fortão e de sorriso fácil, dentes brancos, fartos. Era ele quem controlava o bondinho, baixava e levantava a alavanca em cada ponto de parada.

A senhorinha sentou-se ao meu lado. Só então reparei na pele do seu rosto. Aparentava maciez de pétalas, sem manchas e com rugas discretas, fininhas demais para quem devia ter 70 ou 80 anos. Quis elogiá-la, mas não avancei nas palavras. Ela, na sua discrição, com certeza sentia que eu a observava, mas disfarçou bem.

Eu insistia em olhar aquele rosto de paz. A senhorinha mantinha uma postura encolhida na sua humildade, na submissão consentida e feliz, braço dado ao marido. Eram unidos por um carinho mútuo de calma e que respingava em mim. Senti-me bem de estar ali. Era quase um privilégio.

Fiquei imaginando a dieta da senhorinha, rica em peixes, legumes. Alimentos que conservaram-lhe a pele alva. A vida dividida e sabiamente vivida deu-lhe paz e um brilho que enriqueceu ano a ano a pele, bochechas róseas como as de um bebê. Quis novamente elogiá-la, mas contive-me. Poderia incomodá-la. Deixei-a imersa no seu mundo.

O bondinho parou, ela desceu, o marido a segui-la, protegendo-a na descida dos degraus. Voltei então o olhar para o rapaz com barba de Wolverine, coração justo como o do personagem da Marvel. Falava alto, discrição inexistente:

- Você deve então ir para o Rio ou Salvador. Mas vou te avisando que não será fácil, não. As mulheres brasileiras são difíceis, viu? 

O controlador do bondinho achou graça naquele brasileiro e mostrou novamente seus dentes brancos. Eu já não podia mais ver pela moldura da janela a senhorinha curvada pela humildade do tempo. Ela ficara para trás no seu silêncio feliz, mas ainda podia sentir aquela imensa paz que resvalou em mim por instantes.

2 comentários:

  1. Sublime.

    há uma aura de encanto em cada pessoa que só pode ser percebida quando abrimos nossas janelas de sensações...

    Abraço!

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  2. Geralmente encontramos em nossos caminhos, pessoas como essa senhoria, a vontade que tem é a possibilidade de passar mais tempo junto dessas pessoas..Abraços.Sandra

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