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Deslumbramento

"Por que algumas pessoas têm necessidade de viver duas vezes? Uma quando vivem, a outra quando escrevem? E por que a segunda vez é mais importante que a primeira? Isso é tão misterioso como concluir que as horas de sono, o sonho, são mais importantes que as horas que passamos acordados."  (Marguerite Duras)

Fotografia: Pakayla Rac Biehn

... ela atende o telefone. Desliga-o após poucas palavras. Dá um último gole no cappuccino que já esfria. Paga pelo livro que alguém já leu e guarda-o na bolsa. Às 23h35 daquele mesmo dia, lê a primeira das 145 páginas. Conhece, sem decifrar ainda, o mundo subjetivo daquela mulher.

Vira a página, coleciona frases, depois adormece: "Pensamentos nascentes e renascentes,cotidianos, sempre os mesmos, que vêm em enxurradas, ganham a vida e respiram em um universo disponível de confins vazios, sendo que apenas um, apenas um, chega com o tempo, no fim, a ser lido e visto um pouco mellhor que os outros..."

O relógio anuncia que o dia já está perto de nascer. Ela resgata o livro caído no chão, ao lado da cama. Apressa-se, guarda o livro na bolsa. O telefone não tocou mais. Ela precisa de outro cappuccino, que já chega estranhamente frio. Ninguém a vê, ninguém a quem reclamar. Conforma-se, abre o livro, mais uma página e reflete sobre a constatação de que nada saber sobre essa personagem, já era conhecê-la. "A palavra atravessa o espaço, procura e pousa. Ela pousa a palavra em mim."

Aparece alguém, que sorri. Ela paga pelo que não bebeu. Sai pela calçada, posta-se diante do lago de águas tranquilas que serve-lhe de mar. Chega à página 141, quase o fim:

"... O mar sobe enfim, alaga os pântanos azuis uns após os outros, progressivamente, e com uma lentidão igual eles perdem sua individualidade e se confundem com o mar, está pronto para estes, mas outros esperam sua vez. "

Ela pensa. Fecha o livro. Olha o lago, as águas que se movimentam para tranquilizá-la. Não há mais nada  para ler ali.  Espera a noite chegar para começar a escrever a sua história.


* Texto inspirado em "O Deslumbramento", de Marguerite Duras


11 comentários:

  1. Lindo ,Rovênia... Uma linda descrição desses momentos ...Gostei muito! beijos,tudo de bom,chica

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  2. Deslumbrada estou com o uso que você faz das palavras e admiro o modo como como as letras por aqui fluem, encantam e nos levam a outros mundos. E obrigado pelo carinho nesta data querida.

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  3. Por que a vida que criamos nos permite ver a mágica que podemos produzir!
    Que delícia de texto! Parabéns!

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  4. caraca! que a semana toda seja assim cheia de inspiração. vou ficar aqui te esperando pois sei que venha o que vier caberá direitinho dentro de mim.

    beijo

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  5. Bonita forma de começar a semana: deslumbrando-se!

    "deslumbramento (s. m.)... [Figurado]: Sedução; encanto; fascinação."

    "deslumbrar (v. tr.)... Deixar-se fascinar (sem poder resistir à tentação)".

    Isso descreve minha sensação ao ler sua postagem. Ótima semana!

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  6. Que maravilhosa leitura Srta! Marguerite Duras...lindo! Lindo blog também! abração

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  7. Deslumbrada!
    Palavra que única para comentar essa postagem, paguei por ela o que valia na grande fábrica :)

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  8. Por quê não deslumbrar-se? Adorei, uma ótima semana.
    Abraço amigo!

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  9. Ei, que intenso. Fez borbulhar no meu peito a angústia de tentar, de viver, de pausar e beber o café esperando que alguém que reclame a gente. E achei engraçado como fluiu tão bem, e pausou tudo em mim.

    Inquietou.


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  10. Um verdadeiro encantamento, vc sempre acerta no texto que sempre vai além das palavras.
    Beijos
    Joelma

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  11. Os textos da escritora Marguerite Dunas são sempre deslumbrantes,sempre bom ler e reler.
    Obrigada da partilha
    beijo

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