Páginas

Translate

Texto Frankenstein


Pinterest

Picotar papel é uma distração que há muito não recorro. Tenho prazer em juntar os pedacinhos do inteiro e jogá-los pelos ares, uma chuva de palavras picotadas sobre a minha cabeça! Mas quem já passou pela experiência de escrever um texto, e deixá-lo nas mãos da edição, sabe muito bem que, no outro dia, pode se surpreender com a tortura íntima. É o poder dos editores, que mexem e alteram seu texto na pressa do tempo do fechamento e sem o respeito devido.

Não se iludam: apenas quem escreve tem zelo pelas palavras que seleciona para o papel. Quem lê, muitas vezes não entende, acha que foi fácil ou menospreza. Poucos reconhecem o valor real de cada palavra.

Já estive dos dois lados e confesso: chega muita coisa ruim, palavras paridas sem o menor carinho. Gente desleixada que nunca chegará a lugar nenhum no mundo da literatura porque será um eterno refém dos editores. E eles, vocês já sabem... Os deuses da edição não leem direito, não entendem direito o que está escrito e não substituem as palavras corretamente. Criam um verdadeiro texto Frankenstein.

Há exceções, mas não são a regra. Caiu-me a ficha de escrever sobre isso ao ler agora há pouco um poema de Engels, Os beduínos, publicado em 1838. O editor simplesmente substituiu a estrofe final - sem o consentimento do autor.

Era assim:

Retornem a casa, convidados exóticos!
Seus mantos do deserto não combinam
Com nossos paletós e coletes parisienses,
Nem suas canções com nossa literatura!

Ficou assim:

Eles pulam a serviço do dinheiro,
E não pelo chamado primordial da natureza.
Ficam com o olhar vago e em silêncio, todos
Menos um, que entoa um cântico fúnebre.


Engels não gostou. É claro!

11 comentários:

  1. bom dia Ro

    A pior coisa é qdo somos castrados de nossas ideias,pq tudo tem que ter sempre o mesmo padrão. Mas quem disse que o padrão é o que encanta?

    bjokas =)

    ResponderExcluir
  2. Sobre isso, Nelson Rodrigues, jornalista e escritor brasileiro (1912-1980), deu um depoimento manifestando a sua rejeição ao copidesque:

    "Sou da imprensa anterior ao copidesque. (...) Na redação não havia nada da aridez atual... (...) Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda. Jamais. Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copidesque.
    Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copidesque não respeitava ninguém. (...) Sim, o copidesque instalou-se como a figura demoníaca da redação. (...) Aliás, devo dizer que o copidesque e o idiota da objetividade são do mesmo gênero e um explica o outro (...) E o pior é que, pouco a pouco, o copidesque acabou fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós cem milhões de copidesque. Cem milhões de impotentes de sentimentos."

    '“Hay Que Endurecer, Pero Sin Perder La Ternura Jamás'


    Bom trabalho, Amiga .

    Beij0

    ResponderExcluir
  3. Vale falar sobre isso, vale um livro sobre isso.
    Já me "corrigiram", fizeram alterações, subtrações. Enfurecida eu fiquei e só de lembrar fico novamente. Desisti de participar de coletâneas por isso, E de mandar fazer um livro meu tb, para não enlouquecer em rever, corrigir e me perder nas minhas próprias palavras que selecionadas e colocadas lado a lado são como um tesouro que não se deve mexer, um cristal que quebrado remendado não fica igual.

    Uma peça esculpida, que para o escultor, mexer e remexer machuca, distorce

    Para os que de fato corrigem: aplausos
    Para os paridores de palavras sem cuidado: um fado, bem chorado e lamentoso

    ResponderExcluir
  4. Olá Rovênia,

    você acredita no transcendental?

    Veja bem, ontem a noite estava lendo este poema de Engels e preparando uma aula e em pedido de trabalho para meus alunos sobre biografias não autorizadas, etc...

    Hoje abro o computador e vejo esta postagem.

    Afinal, acredita ou não?

    Um abração carioca.

    ResponderExcluir
  5. Boa tarde Rovênia.. imagina a situação né..
    se dar a escrita, falar com toda a alma e ver tudo mudado no dia seguinte.. sei que acontece muito com livros...
    a gente escreve uma coisa e quando vem para revisão eles metem coisas que não eram para estar lá.. por isso que vejo a nossa bíblia assim.. totalmente mexida.. tem verdades nela, claro mas muita coisa esta oculta de nós.. abração e um lindo dia

    ResponderExcluir
  6. ótimo texto Rô, bjãão
    otima quarta-feira.

    http://blogcoisinhasdaduda.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
  7. Mais um belo texto!! Triste ser privado de expor aquilo que custamos tanto para expressar.

    beijos

    ResponderExcluir
  8. E olham que os editores cobram caro. Fiz uma pesquisa e um texto de 10 mil palavras saem na faixa de 250,00 reais. Bjos,

    ResponderExcluir
  9. Deve ser uma tortura mesmo, uma violação da essência do autor. À cada palavra um sentido.
    Adorei a poesia impregnada nas duas primeiras linhas do primeiro parágrafo.
    Aprendo muito aqui
    bjs..
    bjs.

    ResponderExcluir
  10. Ah nem me fale! hahahaha

    Bem sou independente hoje e estou adorando! Obviamente que já começo a sentir as dificuldades de não ter uma editora me ajudando na divulgação, mas o retorno e o contato com os leitores está sendo delicioso e outra...

    Você falou uma coisa certa, os editores cortam coisas, mudam e não nos deixa das palpite, o que acho um atentado!

    A poesia foi mesmo um exemplo triste de mudança! Beijos!

    Ps: Não esquece do marcador, o escritor lá quer mandar pra vc, depois vc compra o livro! Beijos!

    ResponderExcluir
  11. No caldeirão das palavras, uma pitada a mais ou a menos interfere em todo o sabor.

    Tua postagem está saborosa.

    Meu abraço!

    ResponderExcluir

Faça o seu comentário!