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Capítulo I - Acaso dos cadarços (*)

Imagem: Favim.com

    Fim de tarde de domingo. Ventava. As primeiras florações da estação que chegava não resistiam à brutalidade da ventania e iam de encontro ao solo. E rolavam rua abaixo. Para eles, era dia de festa. Só não gritavam porque a força do vento comprimia-lhes os rostos e estagnava-lhes a voz. As caras amassadas mostravam o sorriso inocente e feliz. 
   Mulheres corriam a fechar janelas e a chamar os filhos para dentro. Um senhor forçava, com vigor, o chapéu sobre a cabeça. Escondia as mãos no sobretudo e as pontas de um cachecol xadrez em vermelho, preto e branco agitavam-se. 
   Os primeiros pingos começavam a cair. No jardim próximo, eles furavam a terra fofa com violência. E logo mais caía mais um, e depois mais outro e mais um. Num instante, já eram centenas. Poças se formavam aqui e ali. Alguns meninos chutavam a enxurrada para o desespero das mães, que se esgoelavam atrás das janelas semifechadas. 
   Manhã de oito de março de 1952. O dia era claro e fresco. A chuva da véspera apagara todo o odor da poeira e o ar era muito bem aceito por todas as narinas. Alguns pássaros arriscavam-se a sair por entre as folhagens e logo estavam saudando contentemente o dia sem sol. Por volta das dez horas, um carro com barulho insurpotável quebrava o encanto do dia. E pouco depois chegava um outro piscando luzes e com mais barulho. 
   Homens uniformizados, com cassetetes em mãos, examinavam tudo e faziam anotações numa aparente caderneta. Um deles, carrancudo, com um bigode que escondia os lábios e óculos escuros para não mostrar os olhos - sei lá por quê  - se aproximou. Olhou para meus pés e depois para meus olhos. Eu, então, o olhei também. Primeiro para seus pés e depois para seus olhos. Era uma forma de retribuir-lhe o cumprimento. Talvez ele fosse de descendência oriental e tivesse vergonha dos olhos esmiuçados e, por isso, os óculos escuros naquela manhã sem sol. 
    Porém, ele tomou-me as mãos e meteu-me atrozes algemas. Confesso que hesitei em reagir. Não sabia se perguntava-lhe o que havia ou se morria mesmo, tal era o meu espanto. Mas o carrancudo de bigode, que escondia os lábios, mostrou-me os dentes de cavalo. Tive um ataque de medo e novamente pensei em morrer. Tranquilizei-me pouco tempo depois: devia estar sonhando. Em alguns filmes era assim, e então o cara acordava e ria tanto quanto se aliviava. 

(... continua amanhã)
 
 * Texto que escrevi no primeiro semestre de  1991, na disciplina Oficina de Texto I, ministrada por Climério de Souza Ferreira, Faculdade de Comunicação/UnB.

5 comentários:

  1. Adorável...

    Sempre foste talentosa com as palavras, sempre tiveste jardim florido dentro de ti.

    Um abraço!

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  2. Um conto muito bom para principiante.
    Bem se vê que tinha futuro essa menina!
    Fiquei interessada na continuação ficou um suspense _ será sonho?
    Linda também a imagem Rovênia,
    te vejo no próximo capitulo ok?
    beijinhos

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  3. Que lindo Rô.. Quero acompanhar a leitura! Bjos
    Gabi

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  4. Olá!!
    Acabei de conhecer o seu blog e me encantei com tudo por aqui. Pra nao deixar de acompanhar suas postagens, já estou te seguindo. Não tenho muito a oferecer, somente as minhas " invencionices " de uma dona de casa que se arrisca numa costurinha, uns artesanatos, tudo para deixar a minha casinha com um pouco que tenho mais alegre, mas tenho a minha amizade que é sincera e bem real, então :)

    se quiser conhecer o meu blog http://www.minhafamiliaehminhavida.blogspot.com.br/ será um prazer te ter por lá.

    Tenha um lindo dia!!!

    Bjos e fique com Deus!

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  5. Uallll. Que beleza Rovênia.
    Adorei a descrição da chuva no início do texto.
    Uma cena linda de imaginar.... E o restante... Como envolve o leitor... Já já leio os outros.

    Beijocasss ;)

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