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A lição dos irascíveis



                Ele e ela nasceram em pequenas cidades mineiras, daquelas em o tempo parece passar mais devagar, sem nada para fazer e que nos faz sentir tanto sono. Pobres, tinham tudo para ser dois entre tantos anônimos a passar por esta vida. Mas, a pobreza ensinou-lhes desde muito cedo a perseverança, ainda que não soubessem disso. Negro, filho de pedreiro, discriminado nas festas de criança, ele foi salvo pela voracidade dos livros. Andava de peito estufado, que nem fazem os pavões, para enfrentar a humilhação e os olhares que saltavam preconceito. A ânsia de absorver conhecimento fazia o menino negro a escrever palavras no ar o que lhe valeu a fama de “menino mais esquisito”.  
Ela era dona de uma pele alva e branquinha, olhos da cor do mel, tímida e ingênua ao ponto de se olhar várias vezes no espelho em busca da beleza. Seria bonita? Aquela resposta era uma bobagem e de todo jeito não queria ter a fama de “mais uma bonitinha burra”. Era preciso ter os pés no chão. Ela só tinha cinco camisetas, uma para cada dia útil da semana. Sapato novo, só quando a “melissinha” arrebentava ou o tênis barato furava a sola. O mais importante, repetia ela para si mesma, era aprender, ainda que não soubesse se teria uma chance entre os mais ricos.
Tantos anos depois, moram os dois na mesma cidade grande. Ele correu o mundo, as melhores universidades, em busca de mais conhecimento. Ela ganhou prêmios na profissão, chegou aonde queria até frear o compasso para investir nos estudos dos filhos. Leva-os a exposições, faz viagens que podem ser aproveitadas nos trabalhos da escola, frequenta livrarias, apresenta os clássicos da literatura, no fim do dia, exausta, posta-se ao lado deles disposta a sanar dúvidas e alargar descobertas.  No trabalho é igual. Não sossega, dá ideias e só falta se estiver morrendo... “Dou o sangue e a veia se for preciso”, costuma dizer.
São irascíveis. Adjetivo visto por outros, não por eles. A determinação e a busca da perfeição fizeram dela uma chata. Tudo parece pouco na visão dela. Tudo pode ser melhorado e completado. É como se nada pudesse ficar pronto. Todos a sua volta admiram-se, espantam-se, mas não entendem. É tudo exagero. Ela até reflete, mas não consegue parar. Exige muito porque busca muito. É como se todo o tempo de uma vida fosse pouco. E ela está certa, não?  
Ele tornou-se a  referência atual em quem busca espelho na ética, no correto. Carrega no peito que continua estufado a honra, a honestidade, a sobrevida, o não dever nada para ninguém.  Esta semana aparece na capa da revista de maior circulação no país como o justiceiro da verdade. Ela esbarrou na revista, interessou-se pela reportagem daquele homem negro. Depois fez umas anotações num caderno de folhas amarelas que, no descuido, deixou aberto na mesa de trabalho, antes de pegar apressada a bolsa vermelha para buscar os filhos na escola:



“A vida é engraçada. O juiz Joaquim Barbosa foi avisado pelo então ministro Márcio Thomaz Bastos -  lamentável defensor do bicheiro Cachoeira -  que seria indicado por Lula à nova vaga no Supremo Tribunal Federal. Como fez ao indicar uma mulher à presidência da República, Lula queria fazer história ao indicar o primeiro negro para corte suprema do país. A assinatura da indicação é de José Dirceu, então ministro da Casa Civil, que é hoje julgado culpado pelo juiz negro por chefiar o maior esquema de corrupção já deflagrado no país!”

Claro, não estava tudo escrito assim. Foi preciso juntar as anotações feitas de forma esquemática e encadeada. No fim, é o pensamento dela traduzido. Resta  a pergunta: 

- Por que ela fez essa anotação?  

Um comentário:

  1. Nossa, Rovênia, tocante a ironia da vida...

    Semana maravilhosa para você!

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